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Os animais e os cosméticos

Tão polêmicos quanto os mamilos! Recebi essa semana um abaixo-assinado da organização de ativismo virtual Change.org (uma boa organização, a propósito, vale a pena dar uma conferida na página) organizado pela ONG sem fins lucrativos Cruelty Free International direcionado a Presidente Dilma e pedindo a proibição dos testes em animais para cosméticos. Eu comecei esse projeto de divulgação científica devido a esse tipo de coisa: ativismo radical, invasão do Instituto Royal, Beagles abandonados na rua, etc. Depois de 20 postagens acho que está na hora de riscar a superfície da questão. Em suma: em relação aos testes para cosméticos o que dá e o que não dá para fazer sem os animais? Vou tentar esmiuçar o texto do abaixo-assinado, e quem é e o que defende a Cruelty Free International.

O abaixo-assinado começa dizendo que “...[n]o Brasil, ainda se permite que animais sejam usados em cruéis e desnecessários testes...”, o que é mentira. A Lei Federal Nº 11.794, de oito de Outubro de 2008, conhecida como Lei Arouca (escrita pelo então Deputado Federal Sérgio Arouca, médico sanitarista e Presidente da Fundação Oswaldo Cruz), regulamenta como os cientistas devem se portar diante dos experimentos que envolvam animais e é considerada uma das melhores do mundo na área. O artigo 14 dessa lei define o que pode e não pode ser feito com animais nos laboratórios de pesquisa. Por exemplo, o número de animais usados deve ser o mínimo necessário para a realização do experimento (parágrafo 4); se o experimento puder causar algum tipo de dor ou sofrimento, o animal deve ser anestesiado antes (parágrafo 5); que os animais devem sofrer eutanásia (serem “sacrificados”) apenas se necessário para o experimento e de modo indolor (parágrafo 1); e se a morte não for necessária, os bichos podem ser encaminhados para pessoas ou ONGs de proteção animal que desejem adotar (parágrafo 2).

Bem, mas quem define qual é o mínimo de animais necessários ou se o bicho deve ser anestesiado? A Lei Arouca criou dois conselhos que têm esse papel. O primeiro é o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), órgão federal ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, que tem como função, entre outras coisas, “formular e zelar pelo cumprimento das normas relativas à utilização humanitária de animais” e “monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa” (artigo 5). O outro conselho é descentralizado e formado pelas Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs), formadas em cada instituição de pesquisa ou universidade. As CEUAs devem, entre outras coisas, “cumprir e fazer cumprir [...] o disposto nesta Lei [Arouca] e nas demais normas aplicáveis à utilização de animais para ensino e pesquisa, especialmente nas resoluções do CONCEA” e “examinar previamente os procedimentos de ensino e pesquisa a serem realizados na instituição à qual esteja vinculada, para determinar sua compatibilidade com a legislação aplicável” (artigo 10). Ou seja, o CONCEA deve zelar que a lei seja cumprida, regulando as CEUAs das instituições de pesquisa. E as CEUAs devem ler e aprovar todos os protocolos de experimentos dos cientistas que envolvam animais ANTES de eles serem realizados. E o que eu acho mais importante: tanto o CONCEA quanto as CEUAs são formadas por políticos, cientistas, veterinários e representantes da sociedade protetora dos animais. Ou seja, os ativistas tem voz no momento de decidir se os experimentos feitos são “cruéis e desnecessários” e podem ser substituídos por métodos alternativos.

Seguindo pelo texto do abaixo-assinado, lê-se que “...cosméticos tem sido testados em animais [...]. Entretanto, isso pode ser feito através do uso de testes já aprovados que não utilizam-se de animais, amparando-se nas muitas combinações de ingredientes que já estão estabelecidas como seguras ao uso humano.” O destaque é meu, e o que está destacado está certo. Combinações de compostos já estabelecidas como seguras realmente não precisam ser testadas em animais. Mas só as já estabelecidas. É irresponsável adicionar em um xampu ou creme qualquer um óleo de uma nova planta descoberta no fundo da Floresta Amazônica sem testar antes qual é o efeito sobre um organismo complexo. Assim, a única coisa que vai sair dessa proibição é uma grande redução da inovação nessa indústria. Ou seja, a produção e pesquisa para novos produtos será muita afetada ou até impedida. Colocando o preto no branco: se você ainda espera por um novo creme antirrugas que realmente funcione e não quer ficar sendo enganada por produtos que não fazem nenhum sentido (alguém pensou em DNA vegetal?), não assine o abaixo-assinado. Assim como está acontecendo com a União Europeia, vai acontecer uma migração da nossa incipiente indústria de biotecnologia para países vizinhos e Ásia, com regulamentação mais favorável à inovação.

Por fim, o texto diz “[...] o Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM) estabeleceu-se como forma de aprovar alternativas não-animais para uso no Brasil”. Chamo atenção ao tempo verbal: “estabeleceu-se como forma de aprovar” e não, simplesmente, “aprovou”. O BraCVAM foi criado em 2012 (é o primeiro do tipo na América Latina) e tem com objetivos validar e coordenar estudos de substituição, redução ou refinamento do emprego de cobaias em testes de laboratório. Só no Brasil, existem cerca de 20 grupos independentes de cientistas trabalhando com alguma coisa relacionada com métodos alternativos de experimentação, seja na criação ou validação. Os cientistas e a indústria, seja farmacêutica ou de cosméticos, são os maiores interessados em métodos para substituir o uso de animais nos laboratórios (uma coisa que os ativistas radicais não veem ou não contam). E o motivo é simples e muito mais forte que apenas compaixão pelos bichos: seria mais barato! Façamos um teste hipotético rápido. O que deve ser mais barato: manter um grande número de animais (coelhos, ratos, macacos, etc...) gastando dinheiro com espaço, ração, veterinários, ou trabalhar com cultura de células e tecidos, testes bioquímicos em tubos de ensaio e simulações em computadores? Mesmo considerando que a indústria de cosméticos é a mais cruel e sádica organização do mundo, existe uma coisa ela vai gostar mais do que judiar de inocentes bichinhos felpudos: lucro! A propósito, pagar mais caro por um batom porque ele não foi testado em animais não faz sentido nenhum. Alguém está usando a boa índole do povo para ganhar mais dinheiro. (Mas Deus deve estar vendo essa zoeira!)

Beleza, mas o que é a Cruelty Free International? Uma ONG que trabalha exclusivamente com objetivo que acabar com os testes em animais para a certificação de cosméticos e outros produtos de consumo direto, como produtos de limpeza. A Cruelty Free International foi criada em 2012 como um braço da British Union for the Abolition of Vivisection (BUAV, algo como União Britânica pela Abolição da Vivissecção), uma organização com mais de um século de história que luta contra qualquer tipo de experimentação animal. Certo, tudo muito bonito. Quem é a Cruelty Free International e a BUAV? Quem responde por essas organizações? Não sei. Essa informação não consta em nenhuma parte das lindas páginas na Internet das duas organizações. E isso é grave! Para ser justo, consegui apenas descobrir uma única responsável pelo escritório americano da Cruelty Free International: a Drª Theodora Capaldo, formada em psicologia e presidente da New England Anti-Vivisection Society (NEAVS, Sociedade Anti-Vivissecção de New England, em tradução livre). Drª Capaldo publicou 12 trabalhos científicos (seis deles em italiano), alguns sobre transtorno de estresse pós-traumático em chimpanzés. Mas, sinceramente, não acho que uma psicóloga seja a melhor pessoa para responder pelo trabalho da organização, que pode ter impacto em vários níveis do progresso científico, atingindo institutos de pesquisa, universidades e indústrias. Afinal, quem responde pela Cruelty Free International e pela BUAV? Cientistas sérios com um histórico de pesquisas em métodos alternativos para a substituição dos animais de laboratórios? Advogados comprometidos com a causa? Donas de casa preocupadas com cães abandonados? Preto no branco: é preciso saber o quanto os líderes desses movimentos entendem de Ciência e experimentação animal para que eu e a comunidade científica (e, em um mundo ideal, o público em geral) possamos leva-los a sério. Seria uma irresponsabilidade que pessoas que nunca entraram em um laboratório de pesquisa e acompanharam a sua rotina de trabalho defendam que a experimentação animal para a produção de cosméticos seja simplesmente proibida porque leram na Internet que existem métodos alternativos (que elas não fazem a menor ideia de como funcionam) que podem substituir os animais.

Além disso, em qualquer assunto científico um pouco mais sério, devemos levar em conta um ponto extremamente importante: um possível conflito de interesses. Quando os cientistas vão publicar qualquer trabalho das suas pesquisas, precisamos informar quem deu dinheiro para o laboratório e se algum membro da equipe tem rabo preso em algum outro lugar ou companhia. Por exemplo, você confiaria cegamente em uma pesquisa científica que disse que o café faz muito bem para a saúde e que tenha sido financiada por uma associação de produtores de café? Ou em uma que pesquisa os benefícios dos alimentos transgênicos, mas que tenha sido feito por um cientista ligado a Monsanto? Eu não! Tanto a Cruelty Free International quando a BUAV não recebem dinheiro do Governo Britânico e dependem de doações de terceiros. Quem fez ou faz doações para essas organizações? Essa informação também não está disponível nas páginas da Internet. As empresas de biotecnologia que produzem e vendem os métodos alternativos tem muito interesse na proibição do uso de animais. Quem me garante que elas não estão por trás dos panos financiando a Cruelty Free International?

Infelizmente, o mundo não é movido pelo amor e compaixão pelos animais; a roda gira com dinheiro. E tem muito dinheiro circulando pela indústria de cosméticos. Nesse caso, eu fico com o único lado que fornece as informações com clareza e assina, com seus nomes, seus relatórios e documentos: a Ciência.

Comentários

  1. David, sem entrar no mérito de suas colocações sobre o tema e para esclarecer seus leitores, além de fazer um resgate histórico informamos que a atual Lei Nº 11.794/2008 não foi a originalmente apresentada pelo nosso saudoso colega Sérgio. A referida Lei leva seu nome em homenagem por ter sido de sua inciativa apresentar um PL sobre o tema, o qual era totalmente diferente da atual Lei.

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