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A nossa corrida armamentista contra os microrganismos


“Agora, aqui, é preciso toda velocidade que você possa correr para ficar no mesmo lugar”
(Alice através do espelho)

Aproveitando que o filme de Tim Burton ainda deve estar em cartaz, selecionei para essa semana um artigo que fala de um conceito bastante discutido em biologia, mas pouco conhecido do público em geral (pelo menos das pessoas com quem já conversei sobre isso).

A passagem que abre esse post, retirada do livro de Lewis Carroll, é a base da “Hipótese da Rainha Vermelha” (Red Queen Hypothesis), inicialmente usada em ecologia, mas com aplicações em diversas outras áreas1. Em uma de suas aplicações, essa ideia é usada para descrever as relações entre presas e predadores. Segundo essa linha, predadores desenvolvem estratégias para seu sucesso na captura da presa, enquanto a presa, por sua vez, desenvolve meios de fugir da investida do predador. Essa adaptação da presa, então, exige que o predador desenvolva novos meios, mais sofisticados, de caça, o que força, mais uma vez, a presa a se adaptar e montar uma nova estratégia de fuga, numa corrida eterna.

Em um cenário microscópico, essa ideia pode - e é - aplicada para a relação entre nosso corpo e os microorganismos. As células do nosso sistema de defesa estão em constante luta para impedir que bactérias, vírus e outros pequenos seres invadam nosso corpo. Para isso, nossas células possuem um arsenal químico. Do outro lado, os microorganismos desenvolvem meios de neutralizar nossos armamentos.

O artigo dessa semana é um exemplo bastante interessante dessa relação. Nesse trabalho, publicado na revista científica Cell Host and Microbe, os autores mostram que a salmonela, uma bactéria que causa intoxicação alimentar séria, depende muito da sua capacidade de absorver magnésio para sobreviver ao ataque do nosso sistema de defesa2. Para matar a salmonela, nossos neutrófilos (um tipo de célula de defesa) usam duas estratégias: produzem radicais livres, que lesionam estruturas importantes da bactéria ao reagir quimicamente com proteínas e outros componentes; e sequestram magnésio, para não deixar quase nada sobrando desse metal para ser usado pela bactéria.

A parte interessante, mostrada nesse trabalho, é que a salmonela consegue absorver o pouco de magnésio que sobra e usa esse metal como um potente antioxidante. Dessa forma, usando apenas um mecanismo de escape (absorção de magnésio), a salmonela consegue se livrar de dois potentes ataques de nossas células: a falta de magnésio e os radicais livres. E isso vai um pouco além... essa estratégia cria uma vantagem competitiva contra outras bactérias: em um intestino inflamado, bactérias mais comuns, como a E. coli (o famoso coliforme fecal), perdem na luta pela sobrevivência, tornando a salmonela o tipo prevalente a crescer.

Curtam, comentem, compartilhem... escrevo de novo semana que vem.

DICIONÁRIO

Radicais livres: compostos químicos, geralmente derivados de oxigênio, nitrogênio, bromo e cloro, que reagem muito facilmente com outros compostos. Em organismos vivos, podem fazer lesão celular ao reagir e danificar proteínas, lipídeos e DNA.

Magnésio: um metal usado por algumas enzimas para facilitar as reações químicas no corpo

Antioxidante: moléculas que combatem os radicais livres, prevenindo assim o dano a proteínas, lipídeos e DNA.

P.S.: ainda não assisti o filme que está nos cinemas, então não sei se esse trecho do livro aparece, nem como ele foi traduzido, mas na versão original lê-se: “now, here, you see, it takes all the running you can do, to keep in the same place”. Sugestões de tradução são bem vindas...

REFERÊNCIAS:

1Brockhurst et al., 2014. Running with the Red Queen: the role of biotic conflicts in evolution. Proc Biol Sci. 281: 1382.

2Diaz-Ochoa et al., 2016. Salmonella Mitigates Oxidative Stress and Thrives in the Inflamed Gut by Evading Calprotectin-Mediated Manganese Sequestration. Cell Host & Microbe. 19: 814–825.


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