Pular para o conteúdo principal

[Blogue da Clara] Pílula Lake - Será mesmo uma pílula capaz de substituir os exercícios físicos?


Recentemente, há uma nova pílula presente em assuntos sobre saúde e emagrecimento, prometendo imitar os efeitos positivos do exercício físico. A pílula Lake está sendo desenvolvida para aumentar os níveis de lactato e beta-hidroxibutirato (BHB) no organismo. Essa pílula poderia trazer uma série de benefícios à saúde? Será que é capaz de realmente substituir uma rotina de exercícios?

O que a pílula Lake faz?

A principal proposta da pílula Lake é simular os efeitos do exercício físico ao gerar lactato e BHB no organismo. Quando o corpo está em atividade, especialmente em exercícios intensos, ele produz lactato a partir da quebra da glicose e BHB a partir da metabolização das gorduras. Esses compostos não são apenas subprodutos; foi descoberto que atuam como combustíveis eficientes para as células e têm um papel importante na regulação do apetite. O aumento do lactato e das cetonas (como o BHB) no sangue estaria associado à produção de hormônios que suprimem o apetite, podendo ajudar na perda de peso e na redução do risco de Síndrome Metabólica.

Entretanto, os estudos dessa pílula realizados até agora foram feitos principalmente em camundongos, e as doses utilizadas para observar efeitos significativos foram de 4,1 g/kg. Para um adulto de 70 kg, isso significaria a ingestão de aproximadamente 287 g de pílula por dia; um valor extremamente alto e difícil de alcançar de forma prática e segura. Essa quantidade é várias vezes superior a qualquer dosagem comum de suplemento, levantando preocupações sobre viabilidade e segurança.

Além disso, o estudo que fundamenta a pílula Lake apenas compara os níveis séricos dos ratos em repouso após a administração da pílula, sem considerar como esses níveis se comportariam durante ou após o exercício físico. Essa falta de comparação limita a capacidade de afirmar que a pílula realmente imita os efeitos do exercício.

O lactato

Quando a demanda de energia é alta, como em exercícios intensos, o corpo passa a utilizar a via anaeróbica (ou seja, sem usar oxigênio) para obter energia, já que o oxigênio disponível não é suficiente para manter o metabolismo aeróbico (ou seja, que usa oxigênio). Isso ocorre principalmente nas fibras musculares de contração rápida (fibras tipo II). A glicólise anaeróbica quebra a glicose, produzindo piruvato, que é convertido em lactato. Uma parte do lactato produzido nos músculos pode ser convertido em piruvato em outras células (como fibras musculares de contração lenta e no coração), sendo utilizado para gerar ATP (que é a principal moeda energética da célula). Isso permite que o corpo continue obtendo energia mesmo em condições de baixa disponibilidade de oxigênio, melhorando a resistência em atividades de alta intensidade. O lactato ao ser metabolizado como fonte de energia pelo cérebro, poderia alterar a percepção de necessidade de alimentos, e dessa forma seria uma possível maneira de regulação do apetite.

O BHB

O cérebro normalmente depende da glicose como sua principal fonte de energia. No entanto, em situações de baixa ingestão de carboidratos (como jejum ou dietas com pouco açúcar, como as cetogênicas), os níveis de glicose caem, e o fígado começa a produzir corpos cetônicos, como o BHB, a partir da quebra de ácidos graxos. O BHB é então utilizado pelo cérebro como uma fonte alternativa de energia, já que ele pode atravessar a barreira hematoencefálica (que separa o cérebro do resto do corpo) e fornecer energia de maneira eficiente. Tendo um nível elevado de BHB no sangue, seria uma segunda maneira de alterar a percepção da necessidade de energia, podendo alterar também a regulação do apetite.

A importância do exercício físico

Os efeitos do exercício físico resultam em mudanças benéficas para a saúde, como reduções transitórias nos níveis de triglicerídeos, aumentos nos níveis de colesterol HDL (que é o colesterol “bom”), diminuições na pressão arterial, reduções na resistência à insulina (que é um sinal de diabetes) e melhorias no controle da glicose no sangue. Essas mudanças sustentam o papel importante que as sessões de exercício individuais têm no estado de saúde. Portanto, mesmo doses únicas de exercício podem ter um impacto relevante na saúde, algo que uma pílula não pode replicar.

Mesmo que a pílula Lake apresentasse resultados promissores em modelos animais, não há evidências suficientes para afirmar que ela pode substituir os exercícios físicos. Os benefícios dos exercícios vão muito além do aumento de lactato e BHB. A atividade física regular é fundamental para a saúde do coração, melhora da força muscular, aumento da resistência física, bem-estar psicológico e muitas outras vantagens que não podem ser replicadas apenas com a administração de uma pílula.

Além disso, o exercício promove adaptações fisiológicas que são essenciais para a saúde a longo prazo, como o aumento da densidade óssea e melhorias na função metabólica, que a pílula Lake não pode proporcionar.

A ideia inicial da pílula Lake parecia promissora como uma potencial estratégia complementar na busca pela saúde e bem-estar, mas não deve ser vista como uma solução nem substituta para a atividade física. Além das doses serem inviáveis e não terem estudos suficientes, o aumento de lactato e BHB não substitui a prática de exercícios. O melhor caminho para a saúde continua sendo a combinação de exercícios regulares, uma alimentação balanceada e hábitos saudáveis.

Referências


Ottosen RN, Seefeldt JM, Hansen J, Nielsen R, Møller N, Johannsen M, Poulsen TB. Preparation and Preclinical Characterization of a Simple Ester for Dual Exogenous Supply of Lactate and Beta-hydroxybutyrate. J Agric Food Chem. 2024;72(36):19883-19890.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não, a fosfoamina não é (ainda) a cura do câncer

Em agosto desse ano, uma reportagem do portal G1 mostrou a luta de pacientes com câncer na justiça para receber cápsulas contendo o composto fosfoamina (na verdade, fosfoetanolamina) que supostamente curaria a doença. O “remédio” era produzido e distribuído pelo campus da Universidade de São Paulo na cidade de São Carlos, mas a distribuição foi suspensa por decisão da própria reitoria, já que o composto não é registrado na ANVISA (todo remédio comercializado no país deve ser registrado) e não teve eficiência comprovada. Porém, alguns dos pacientes tratados com a fosfoamina relatam que foram curados e trazem exames e outras coisas para provar. Segundo o professor aposentado Gilberto O. Chierice (que participou dos estudos com a substância), “A fosfoamina está aí, à disposição, para quem quiser curar câncer”. Mas, vamos devagar, professor Gilberto; se a fosfoamina realmente é a cura para o câncer, por que não foi pedido o registro na ANVISA? O Governo Federal poderia produzir gran...

Dr. José Roberto Kater e o ovo: vilões ou mocinhos?

Ontem, eu recebi pelo Facebook um vídeo de uma entrevista com o Dr. José Roberto Kater onde ele comenta sobre os benefícios do ovo na alimentação. Porém, algumas coisas me soaram um pouco, digamos, curiosas (na verdade, em pouco mais de três minutos de vídeo poucas coisas pareceram normais (o vídeo completo está disponível no fim do texto)). O Dr. Kater é, segundo a Internet, médico, obstetra, nutrólogo, antroposófico (a medicina antroposófica é um ramo alternativo com base em noções ocultas e espirituais), homeopata, acupunturista e com mais algumas outras especialidades. Porém, não é cientista, já que não tem currículo cadastrado na Plataforma Lattes (do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento, CNPq) ou assina qualquer artigo científico indexado em banco de dados internacional. Para mim, o cara pode dizer que é o Papa, eu não vou acreditar nele de primeira. As informações científicas estão disponíveis e eu fui pesquisar para entender se o Dr. Kater é um visionário ou ch...

Não, suco de melão São Caetano não é a cura do câncer

Recebi pelo Facebook um link para uma postagem do blogue Cura pela Natureza . Lá é descrito o poder de uma planta medicinal capaz de curar o câncer, controlar o diabetes e, de quebra, fortalecer a imunidade do corpo. Sinistro, né? A planta em questão é chamada de melão São Caetano ou melão amargo. Conhecida cientificamente como Momordica charantia , essa planta faz parte da família Cucurbitaceae, junto com outras plantas famosas, como a abóbora, o pepino e a melancia. Ela cresce bem nas áreas tropicais e subtropicais da África, Ásia e Austrália, e foi trazida ao Brasil pelos escravos. O texto cita o Dr. Frank Shallenberger, dos Estados Unidos, que seria o descobridor dos efeitos medicinais da planta. Fui então atrás das pesquisas publicadas pelo Dr. Shallenberger para saber mais sobre os poderes do melão São Caetano. E descobri que ele nunca publicou nenhum trabalho científico sobre a planta (na verdade, ele nunca publicou qualquer coisa!). Como que a...