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Dor em células de cultura


Para se testar novos analgésicos, aqueles remédios que você toma quanto tem uma dor de cabeça ou quando toma um tostão no futebol de terça à noite, ainda é necessário causar algum tipo de dor, infelizmente. Embora todos os cuidados com o bem-estar dos animais de laboratório sejam levados em conta, ainda assim as cobaias vão passar por um grau de desconforto e dor. Seria excelente se pudéssemos abrir mão dos animais, tendo outra forma de avaliar novos analgésicos.

Um trabalho publicado por pesquisadores americanos, com a participação de uma cientista da Universidade Federal do Rio de Janeiro, deu alguns passos na direção desse objetivo. Os pesquisadores, utilizando técnicas de biologia molecular e engenharia genética, conseguiram transformar um tipo de célula (chamada fibroblasto) embrionária de camundongos em neurônios que respondem a dor. Tudo isso em cultura de célula! O procedimento é relativamente simples e consiste em mudar a atividade de cinco genes dentro do fibroblasto (embora, com certeza, não tenha sido simples descobrir isso).

Os cientistas compararam esses neurônios transformados em cultura com os neurônios naturais dos camundongos, e viram que eles eram muito semelhantes em vários aspectos. Os dois tipos de neurônios tinham os mesmos genes ativos, produziam as mesmas proteínas importantes para a percepção da dor, e eram estimulados pelas mesmas substâncias.

Depois os pesquisadores testaram se esses neurônios em cultura poderiam ser um modelo para estudo da dor patológica. Eles trataram as células com uma substância normalmente presente em casos de inflamação e viram que os neurônios ficavam mais sensíveis a estímulos (e, provavelmente, a dor), como os neurônios “naturais”.

Por último, os cientistas testaram o protocolo com fibroblastos humanos e também foram capazes de criar os neurônios da dor em cultura. Depois, eles usaram células de pessoas saudáveis e de pacientes da Síndrome de Riley-Day, uma doença que atinge o sistema nervoso, afetando o desenvolvimento e sobrevivência dos neurônios. Comparando os neurônios obtidos das células de cada grupo, os pesquisadores identificaram que os neurônios das pessoas doentes apresentam problemas na atividade de um gene importante, algo que nunca tinha sido visto antes, devido à dificuldade de se obter neurônios de pessoas para estudo.

Esse resultado mostra que esse método não vai ser útil apenas para o estudo da dor, em um futuro próximo reduzindo o uso de animais de laboratório na busca por novos analgésicos, mas também será importante na investigação das causas de doenças neurológicas humanas raras, que não podiam ser estudadas devido à falta de um bom modelo.

Referência

WAINGER, B. J. et al. Modeling pain in vitro using nociceptor neurons reprogrammed from fibroblasts. Nature Neuroscience, v. 18, n. 1, p. 17–24, 2015.

Comentários

  1. Nossa! Adorei.
    Conheci o blog através do Curso de Férias do IBqM e estou amando.
    Cheguei a me imaginar cientista lendo essa matéria!!

    Parabéns!! Muito bom!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que gostou! Eu entrevistei uma das cientistas dessa pesquisa; está no YouTube (https://youtu.be/dbDjQ8fDDJM). Assiste lá!

      Excluir

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