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[Blogue do PJ] Fundamentos de Farmacologia (Parte 2): As vias de administração de fármacos

Na primeira parte da série sobre fundamentos de farmacologia, foram abordados conceitos como: “O que é um medicamento?” e “Qual a diferença entre medicamento de referência, genérico e similar?”. Dessa vez, iremos conversar sobre as principais vias de administração de fármacos, além de dar algumas dicas de como tomar corretamente os medicamentos.

Primeiramente, é importante dizer que existem diferentes apresentações dos medicamentos, e esses medicamentos de apresentações distintas podem, ainda sim, ter o mesmo princípio ativo, mas aí não podem ser considerados genéricos nem similares entre si.

As apresentações, mais corretamente chamadas de formas farmacêuticas, são as maneiras como um medicamento se apresenta, buscando facilitar a administração, além de aumentar a estabilidade (validade) e solubilidade do fármaco. O elemento chave das formas farmacêuticas são as substâncias que acompanham o princípio ativo no medicamento, chamadas de adjuvantes.

De uma maneira geral, pode-se dividir as formas farmacêuticas em 5 grandes grupos:
  • Formas Sólidas: comprimidos, cápsulas, supositórios, óvulos, pastilhas, pós e grânulos.
  • Formas semissólidas: pomadas, cremes, géis e pastas.
  • Formas líquidas: suspensões, soluções, xaropes e colírios.
  • Formas gasosas: aerossóis e inaladores.
  • Formas alternativas: adesivos transdérmicos e outros.

As formas farmacêuticas estão intimamente ligadas às vias de administração dos fármacos, uma vez que, a viabilidade na administração de um medicamento depende, e muito, do modo como o mesmo se apresenta. Tente imaginar injetar uma pomada, ou passar um comprimido sobre a pele esperando algum efeito terapêutico, ambas as opções são simplesmente inviáveis.

Por sorte, existem diversas vias de administração de medicamentos, sendo a escolha da via extremamente importante, já que influencia diretamente na velocidade e eficácia do fármaco no organismo.

Normalmente, as vias de administração de fármacos são classificadas em três grupos maiores:

  1. Vias enterais: o medicamento é administrado em algum ponto do sistema digestório, e sua absorção se dá em alguma região desse mesmo sistema. Fazem parte desse grupo a via oral (pela boca), sublingual (embaixo da língua) e retal (supositórios).
  2. Vias parenterais: o medicamento é injetado em alguma parte do corpo. Integram esse grupo: a via intravenosa (na veia), intramuscular (no músculo), intradérmica (na pele), subcutânea (na gordura), e intratecal (na medula).
  3. Vias alternativas: a maioria das vias alternativas são de uso tópico, ou seja, o medicamento é administrado na área que deve ser tratada, buscando uma ação local. Alguns exemplos de vias tópicas são: cutânea (pele), ocular (olho), otológica (ouvido) e nasal (nariz). Além das vias tópicas, também fazem parte das vias alternativas, a inalatória, a por nebulização, e a transdérmica, que geram efeitos por todo corpo.

Para começar, vamos falar sobre a via de administração mais utilizada de todas, a oral. Ela consiste em engolir o medicamento, que pode ter várias formas farmacêuticas diferentes, como a de solução, xarope, cápsula, ou comprimido. Essa versatilidade no tipo de medicamento, acompanhada da facilidade e segurança na administração, faz dessa via a mais atrativa no dia a dia.

Normalmente, a absorção pela via oral se inicia na boca, continua no estômago, mas sua maior parte se dá no intestino delgado. Depois de ser absorvido pelo intestino, o fármaco chega ao fígado, onde uma parte das moléculas é metabolizada, ou seja, elas são alteradas quimicamente, geralmente diminuindo a sua atividade. Esse fenômeno recebe o nome de efeito de primeira passagem, e se refere à passagem do fármaco pelo fígado antes de chegar ao sangue, o que diminui a biodisponibilidade dele. Biodisponibilidade é um conceito que se refere ao quanto do fármaco de fato aparece no sangue.

Representação do efeito de primeira passagem

Além do efeito de primeira passagem, outra desvantagem da via oral é a imprevisibilidade gerada pela interação do medicamento com as comidas e bebidas ingeridas pelo paciente. Por exemplo, caso a pessoa faça uma refeição pesada junto com o medicamento, é possível que a comida atrapalhe a passagem dele pelo estômago ou sua absorção pelo intestino. Geralmente, recomenda-se tomar os medicamentos pelo menos uma hora antes ou depois de uma grande refeição para evitar esse tipo de interação. Também existem medicamentos que devem ser tomados junto com algum alimento por possuírem fármacos muito ácidos, o que pode incomodar e ferir o estômago. A classe dos anti-inflamatórios é famosa por ser administrada junto das refeições, mas esse detalhe deve estar presente na bula.

Um dos erros mais comuns na administração via oral é tomar comprimidos ou cápsulas acompanhados de bebidas que não sejam água. Praticamente todo comprimido e cápsula foi feito para ser administrado com um copo de água. Bebidas muito ácidas ou muito alcalinas podem interagir com o fármaco ingerido, alterando sua biodisponibilidade.

Por exemplo, o cloridrato de propranolol é um fármaco utilizado para o tratamento de hipertensão (pressão alta) e taquicardia (coração acelerado), sendo comumente comercializado em forma de comprimido. A molécula de propranolol possui características alcalinas, o que faz com que os medicamentos que a utilizam como princípio ativo também possuam. Moléculas alcalinas em contato com moléculas ácidas se tornam mais solúveis em água; por esse motivo, caso o cloridrato de propranolol (alcalino) seja ingerido junto com um refrigerante (ácido), por exemplo, o mesmo irá se solubilizar mais rápido que o esperado, favorecendo sua degradação antes de chegar ao intestino. Isso pode fazer com que o medicamento tenha efeito menor que o esperado e o paciente um pico de pressão.

Além das bebidas ácidas, como refrigerantes e cervejas, também é bom evitar beber derivados de leite na hora de tomar medicamentos. Sua alta concentração de cálcio pode gerar interações com alguns fármacos, como a tetraciclina, presente em certos antibióticos. Tomar o medicamento a seco também não é uma boa ideia, pois dificulta a passagem pelo esôfago, além de deixar o medicamento vulnerável ao ácido estomacal. Lembre-se, comprimido se toma com água!

Ainda dentro das vias enterais, temos a via sublingual, em que o medicamento se dissolve debaixo da língua, e a retal, onde o fármaco é administrado pelo ânus. Tanto a via sublingual quanto a via retal possuem uma absorção mais rápida que a via oral, além de não apresentarem efeito de primeira passagem. O principal problema dessas vias é o incômodo que podem gerar ao paciente, uma vez que muitas pessoas se incomodam com o gosto dos medicamentos pela via sublingual, ou com o ato de administração dos mesmos pela via retal.

A via sublingual costuma ser utilizada em casos de emergência, onde é necessária uma resposta rápida do organismo, sendo um bom exemplo o uso de nitroglicerina sublingual em situações de infarto. Enquanto isso, a via retal é utilizada geralmente quando a pessoa não tem condições de ingerir o medicamento pela boca, seja por estar inconsciente, ou talvez pela idade. Por esse motivo que a maioria dos supositórios são administrados em crianças pequenas.

Nas vias parenterais, duas se destacam por possuírem características parecidas de administração; ambas são injetáveis e de efeito prolongado, sendo que em uma a agulha é colocada na gordura (via subcutânea) e a na outra é colocada no músculo (via intramuscular). A via subcutânea costuma ser utilizada para administrar medicamentos proteicos, como a insulina para os diabéticos, ou esteróides, como a progesterona, como anticoncepcional. A via intramuscular funciona de maneira parecida, mas suporta doses maiores do fármaco, além de ter uma absorção um pouco mais rápida. Vacinas são comumente administradas pela via intramuscular, sendo os músculos do braço, da coxa ou da nádega os preferíveis por serem maiores.

Outra via que merece destaque dentre as parenterais é a intravenosa, em que a agulha é inserida na veia e o fármaco é liberado diretamente no sangue. A via intravenosa é a que apresenta os efeitos mais rápidos e mais intensos dentre todas as outras, por isso deve ser utilizada com muito cuidado e apenas por profissionais. Existem dois modos de se utilizar essa via : através de doses únicas ou através de infusão contínua. As doses únicas são utilizadas para gerar efeitos imediatos, como na injeção de morfina em pessoas que estão sentindo dor extrema. A infusão contínua, por outro lado, serve para manter o paciente recebendo doses do medicamento enquanto ele estiver conectado à fonte(podendo ser desde uma bolsa de plástico até uma bomba infusora). O exemplo mais comum de infusão contínua é a bolsa de soro.

As três principais vias parenterais de administração de fármacos

Como último grupo, temos as vias alternativas, sendo a maioria delas de uso tópico, ou seja, geram ação local. Como exemplos de medicamentos de uso tópico temos: Hipoglós (via cutânea), Lacrifilm (via ocular), Cerumin (via ontológica), além do famoso Neosoro (via nasal). Os medicamentos tópicos costumam se apresentar na forma farmacêutica de pomada ou creme, para uso cutâneo, ou na forma de solução, para as demais vias citadas.

Além dos medicamentos de uso tópico, também existem medicamentos administrados por vias alternativas que geram efeito sistêmico ou quase sistêmico. Dois grandes exemplos são: os antiasmáticos, administrados pela via inalatória; e os adesivos de nicotina que atuam pela via transdérmica. Outra via alternativa comum é a por nebulização, muito utilizada para tratamento de doenças respiratórias e sedação de pacientes. Sobre a via inalatória, o Igor, aqui do blogue, fez uma publicação sobre insulina inalável, que também vale muito a pena conferir.

As vias de administração de fármacos são uma parte importante do conteúdo sobre farmacocinética, conceito que será abordado na terceira parte da série sobre fundamentos de farmacologia. Esse terceiro texto terá caráter um pouco mais técnico que os outros, e é recomendável ler as partes 1 e 2 antes dele para uma melhor compreensão, embora não seja obrigatório.

Acesse a parte 1, sobre o que é um medicamento, aqui.

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