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A bactéria da vida eterna e um senhor querendo atenção


Me marcaram no Facebook em um vídeo do canal AssombradO.com.br. O vídeo reproduz notícias de que um pesquisador russo, chamado Anatoli Brouchkov, teria descoberto uma bactéria capaz de aumentar a longevidade e melhorar a saúde de ratos idosos. A bactéria em questão seria uma tal Bacillus F. Legal, né? Fui então atrás dos trabalhos do Dr. Brouchkov para ver os resultados. Mas só achei um cientista carente.

Buscas no site do Pubmed (que é um banco de dados de revistas científicas das áreas biológicas e médicas) mostram que o Dr. Brouchkov tem 13 artigos publicados. Já no site Scopus, que tem uma base de dados mais ampla, aparecem 15 resultados. Essa produção pode ser considerada baixa para um pesquisador da idade de Brouchkov, mas isso não é nada grave. Porém, se cruzarmos nas buscas Brouchkov e Bacillus, temos apenas dois artigos. E pior: Brouchkov não é o pesquisador responsável em nenhum dos trabalhos. Fica a pergunta: se ele não é o responsável, por que fica em foco na mídia? Fazendo uma comparação rápida, é um problema parecido com o caso da fosfoetanolamina, onde o Dr. Chierice colocou a boca no trombone sem ser o cientista líder do estudo (e a treta foi formada). Assim, acho que o Dr. Brouchkov quer apenas atenção.

Então, o que das notícias foi cientificamente publicado? Primeiro, o vídeo diz que uma das bactérias é capaz de quebrar petróleo em água. Hum, vamos por partes. É quimicamente impossível simplesmente quebrar petróleo em água, porque o petróleo tem átomos de carbono, que não estão presentes na água. Teríamos que descobrir uma bactéria alquimista. O que as bactérias podem sim fazer é usar o petróleo como fonte de energia e de moléculas para o crescimento, transformando o petróleo em gorduras e açúcares. Essas bactérias poderiam ser usadas para conter e ajudar em casos de acidentes com derramamento de óleo no mar e em praias. Esse processo é chamado de biorremediação e diversos grupos de pesquisas brasileiros trabalham nessa área, já que a exploração de petróleo é parte importante da economia do país. Mas uma bactéria capaz de “comer” petróleo não seria nenhuma novidade: diversos micróbios fazem isso e já são conhecidos há mais de uma década (HEAD; JONES; RÖLING, 2006). Para piorar, nenhuma das bactérias encontradas no gelo da Sibéria é capaz de fazer isso (ZHANG et al., 2013). Então, não sei de onde saiu essa informação.

Outra bactéria descoberta lá seria capaz de degradar celulose; efetivamente uma bactéria identificada como Arthrobacter phenanthrenivorans se mostrou capaz de quebrar esse açúcar presente em plantas (ZHANG et al., 2013). Mas isso está longe de ser um milagre: muitas outras bactérias também são conhecidas por essa capacidade (RANSOM-JONES et al., 2012). Aliás, várias delas são estudas visando seu uso na produção de etanol combustível a partir de bagaço de cana, o que é chamado de etanol de segunda geração.

E quais informações estão disponíveis sobre a tal da Bacillus F? Dois trabalhos apenas. O primeiro mostra que a bactéria não causa doença em camundongos e protege esses animais de infecção por Salmonella, bactéria conhecida por causar graves intoxicações alimentares (FURSOVA et al., 2012). Os autores especulam que a Bacillus F estimularia o sistema imune dos camundongos, deixando os bichos mais resistentes a doenças, mas isso não é mostrado claramente. O outro trabalho é a publicação da sequência completa do genoma da bactéria, o que por si só não traz grandes informações sobre a biologia da Bacillus F (BRENNER et al., 2013).

Mas e a história da vida eterna? Não tem nada publicado. Só achei um trabalho do Dr. Brouchkov com outra bactéria, chamada Bacillus sp. linhagem 3M (BROUCHKOV et al., 2011). Nesse artigo, a bactéria aumenta o tempo de vida de moscas-da-fruta e de camundongos. E as moscas sofrem com uma redução na sua fertilidade, ou seja, colocam menos ovos. Essa relação entre longevidade e fertilidade já é bem conhecida e estudada pela Ciência (EHRLICH, 2015). Desse modo, os efeitos vistos podem simplesmente não ter relação com a bactéria em questão; qualquer estresse que cause uma redução na fertilidade (uma infecção, redução da quantidade de comida disponível, etc.) pode levar a um aumento na longevidade. Os resultados mostrados pelo Dr. Brouchkov são muito frágeis para justificar o alarde feito pela mídia russa.

E então, provavelmente querendo receber atenção, Dr. Brouchkov disse que se infectou de propósito com a Bacillus F, se usando de cobaia para testar os supostos efeitos da bactéria sobre a saúde. Assombroso, não é? Na verdade, não. Se injetar uma bactéria que sabemos que não causa doença é fácil. Eu vou contar uma história bem mais assombrosa!

Era uma vez, um cientista australiano chamado Barry Marshall, médico gastroenterologista (especialista do sistema digestivo) e professor de microbiologia da Universidade da Austrália Ocidental. Na década de 1980, Dr. Marshall, junto com seu colega Dr. Robin Warren, estudava uma bactéria encontrada em estômagos de pacientes com gastrite. Os dois cultivaram a bactéria, chamada de Helicobacter pylori, em laboratório e construíram a hipótese de que essa bactéria causava a doença. Foram ridicularizados pela comunidade médica, que dizia que isso era impossível, pois as bactérias não sobreviveriam no ambiente ácido do estômago; para ela a gastrite era causa pelo estresse e consumo de comida picante. Para dar força a sua teoria, Dr. Marshall precisava cumprir os postulados de Koch, quatro critérios definidos pelo médico alemão Robert Koch em 1890 para mostrar a relação de causa entre um micróbio e uma doença. Os postulados de Koch são: 1) O micróbio deve ser encontrado em todos os organismos que sofrem da doença (Dr. Marshall já tinha encontrado a H. pylori em pacientes com gastrite); 2) O micróbio deve ser isolado de um doente e cultivado em laboratório (Dr. Marshall já tinha uma cultura de H. pylori no laboratório); 3) O micróbio cultivado em laboratório deve causar a mesma doença quando colocado em um organismo sadio e; 4) O micróbio deve ser novamente isolado desse novo organismo infectado (faltavam esses dois últimos). Dr. Marshall tentou infectar leitões com H. pylori diversas vezes sem sucesso e, então, radicalizou! Através de uma endoscopia, ele “bebeu” uma cultura de H. pylori. Em três dias, ele já estava sentindo enjoo; em cinco, apresentou vômito. Em oito dias, ele já estava com gastrite e conseguiu isolar e cultivar a H. pylori do seu próprio estômago (cumprindo o terceiro e quarto postulados de Koch, dando força a sua teoria). Depois de 14 dias, ele começou um tratamento com antibióticos e se curou da gastrite, o que a partir de então teve grande implicação no tratamento da doença (MARSHALL et al., 1985).

E aí, Dr. Brouchkov? Topa essa? Isso sim é assombroso! A pesquisa do Dr. Marshall foi publicada em 1985 e, 20 anos depois, ele e o Dr. Warren ganharam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Parece que valeu a pena!

Referência

BRENNER, E. V. et al. Draft Genome Sequence of Bacillus cereus Strain F, Isolated from Ancient Permafrost. Genome Announcements, v. 1, n. 4, p. e00561–13, 2013.

BROUCHKOV, A. V et al. Relict microorganisms of cryolithozone as possible objects of gerontology. Advances in Gerontology, v. 1, n. 1, p. 39–44, 2011.

EHRLICH, S. Effect of fertility and infertility on longevity. Fertility and Sterility, v. 103, n. 5, p. 1129–1135, 2015.

FURSOVA, O. et al. Probiotic Activity of a Bacterial Strain Isolated from Ancient Permafrost Against Salmonella Infection in Mice. Probiotics and Antimicrobial Proteins, v. 4, n. 3, p. 145–153, 2012.

HEAD, I. M.; JONES, D. M.; RÖLING, W. F. M. Marine microorganisms make a meal of oil. Nature reviews. Microbiology, v. 4, n. 3, p. 173–182, 2006.

MARSHALL, B. J. et al. Attempt to fulfil Koch’s postulates for pyloric Campylobacter. Medical Journal of Australia, v. 142, n. 8, p. 436–439, 1985.

RANSOM-JONES, E. et al. The Fibrobacteres: An Important Phylum of Cellulose-Degrading Bacteria. Microbial Ecology, v. 63, n. 2, p. 267–281, 2012.

ZHANG, D.-C. et al. Isolation and characterization of bacteria from ancient siberian permafrost sediment. Biology, v. 2, n. 1, p. 85–106, 2013.

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