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Refrigerante pode ser ruim, mas câncer ele não causa


Recebi mais um vídeo (pelo menos esse era curto), dessa vez com um trecho da entrevista do palestrante Tiago Rocha para o programa “Primavera Saúde”, da TV Primavera de Criciúma, afiliada a Rede Internacional de Televisão. Rocha diz para a entrevistadora que o consumo de refrigerantes é a principal causa do surgimento de câncer nas pessoas. Nas palavras dele: “três de cada 10 tumores é causado pelo refrigerante”. Será? Vamos analisar.

Começando pelo sujeito: quem é Tiago Rocha? Eu não conseguir achar um currículo propriamente dito de Rocha (nem o Currículo Lattes, que é a base de dados de currículos de cientistas brasileiro, coordenada pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento, CNPq). No seu site, Rocha diz que é naturologista, cientista ambiental e especialista em medicina natural. Não sabe o que é isso? Eu também não sabia e fui pesquisar. A naturologia (medicina natural acaba sendo a mesma coisa) é um ramo da medicina alternativa que prega a cura natural por métodos sem qualquer evidência científica de que funcionem. Existem duas faculdades de naturologia credenciadas no Ministério da Educação, que basicamente ensinam aos alunos pseudociências, como cura por cheiros (aromaterapia), por cores (cromoterapia) ou banhos de mar (talassoterapia). Já cientista alimentar é uma especialização que só Rocha tem; até onde eu sei Ciência Alimentar não existe. Existe Ciência dos Alimentos, que estuda a composição, processamento, deteorização de alimentos de modo geral. Acho que não era isso que Rocha queria dizer.

O argumento de Rocha para dizer que os refrigerantes causam câncer é o fato de eles serem ácidos e que o câncer cresce em ambientes ácidos. Se isso fosse verdade, limonada suíça também causaria câncer, porque ela é tão ácida quanto os refrigerantes. E se o ambiente ácido causasse câncer, tumores no estômago seriam os mais comuns. Mas é comum encontrar esse mito da relação entre câncer e acidez na Internet, muitas vezes citando o cientista alemão Otto H. Warburg. Warburg teria dito que “nenhuma doença, inclusive o câncer, não pode existir em ambiente alcalino”. Não sei se de fato ele disse isso, mas é fato que nem você pode viver em um ambiente alcalino, ou ácido. A acidez do seu sangue é finamente controlada pela respiração e pelos rins. Se esse equilíbrio for quebrado e o seu sangue ficar um pouco mais ácido ou alcalino, você vai morrer. Uma dica: ter ganhado o Prêmio Nobel não te exime te falar besteiras.

Bem, o argumento de Rocha pode não ter fundamento, mas talvez os refrigerantes possam causar câncer por outro motivo. O que diz a Ciência? É possível que o rebuliço sobre a relação entre câncer/refrigerante tenha surgido em 2006, com a publicação de um estudo onde cientistas italianos trocaram a água de ratos de laboratório por refrigerante. Ou seja, os animais só bebiam refrigerante a vida inteira, o que é muito mais extremo que o estilo de vida da maioria das pessoas. Os pesquisadores viram um aumento nos casos de câncer de mama e pâncreas nos ratos (BELPOGGI et al., 2006). Depois disso, vários grupos de pesquisa pelo mundo foram verificar relações entre o desenvolvimento de tumores e consumo de refrigerante em pessoas. Antes de continuar, é bom explicar que o câncer é na verdade um “saco de gatos” de doenças; um câncer de pulmão pode ser bem diferente de um câncer de mama. Na verdade, mesmo câncer de pulmão podem ser doenças diferentes em diferentes pessoas. Então é importante analisar cada tipo de câncer separadamente.

A relação mais confusa é com o câncer de pâncreas. Em 2005, pesquisadores associaram o consumo de refrigerante comum (uso comum para os refrigerantes adoçados com açúcar) com câncer de pâncreas em mulheres sobrepesadas (“gordinhas”) e obesas ou que faziam pouco exercício (SCHERNHAMMER et al., 2005). O problema é que pessoas obesas e que não fazem exercício já têm um risco maior que ter câncer, então é difícil estimar o impacto dos refrigerantes. Outros trabalhos conseguiram mostrar uma relação entre câncer de pâncreas e consumo de refrigerantes: um, uma relação pequena (GENKINGER et al., 2012); outro, um efeito importante (MUELLER et al., 2010). Por outro lado, dois outros trabalhos não acharam relação entre essas duas coisas (GALLUS et al., 2011; NAVARRETE-MUÑOZ et al., 2016). Dessa forma, é prematuro dizer que o refrigerante causa câncer de pâncreas.

Apenas um estudo investigou a relação com câncer de fígado. Os pesquisadores encontraram uma associação entre o consumo de refrigerante zero com tumores de fígado na Europa (STEPIEN et al., 2016).

Estudos olhando para câncer de intestino (ZHANG et al., 2010) ou de ovário (LEUNG et al., 2016) não acharam relação com o consumo de refrigerantes.

Por outro lado, dois diferentes trabalhos mostram que o consumo de refrigerantes pode reduzir o risco do aparecimento de câncer de esôfago, embora alguns problemas nesses estudos possam ter facilitado esse resultado não esperado (IBIEBELE et al., 2008; MAYNE et al., 2006).

Em conclusão, não podemos dizer que “três de cada 10 tumores” tem relação com o consumo de refrigerantes. A única relação mostrada foi do refrigerante zero com câncer de fígado, que está longe de ser um dos mais comuns. Isso que dizer que você está liberado para encher a cara de refrigerante? Não. Os refrigerantes comuns têm uma quantidade muito alta de açúcar, o que vai ajudar você a ganhar peso, e a obesidade vem acompanhada de muitas doenças. Os refrigerantes zero não têm açúcar, mas são cheios de adoçantes. E pesquisas mais recentes indicam que o consumo desses adoçantes pode facilitar o surgimento de diabetes (que é a incapacidade do corpo de controlar os níveis de açúcar do sangue). Prefira água! Mas, não podemos assustar as pessoas com mentiras, né, Sr. Rocha?

Referências

BELPOGGI, F. et al. Results of long-term carcinogenicity bioassays on Coca-Cola administered to Sprague-Dawley rats. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1076, p. 736–752, 2006.

GALLUS, S. et al. Soft drinks, sweetened beverages and risk of pancreatic cancer. Cancer Causes and Control, v. 22, n. 1, p. 33–39, 2011.

GENKINGER, J. M. et al. Coffee, tea, and sugar-sweetened carbonated soft drink intake and pancreatic cancer risk: A pooled analysis of 14 cohort studies. Cancer Epidemiology Biomarkers and Prevention, v. 21, n. 2, p. 305–318, 2012.

IBIEBELE, T. I. et al. Cancers of the esophagus and carbonated beverage consumption: A population-based case-control study. Cancer Causes and Control, v. 19, n. 6, p. 577–584, 2008.

LEUNG, A. C. Y. et al. Tea, coffee, and caffeinated beverage consumption and risk of epithelial ovarian cancers. Cancer Epidemiology, v. 45, p. 119–125, 2016.

MAYNE, S. T. et al. Carbonated soft drink consumption and risk of esophageal adenocarcinoma. Journal of the National Cancer Institute, v. 98, n. 1, p. 72–75, 2006.

MUELLER, N. T. et al. Soft drink and juice consumption and risk of pancreatic cancer: The singaporechinese health study. Cancer Epidemiology Biomarkers and Prevention, v. 19, n. 2, p. 447–455, 2010.

NAVARRETE-MUÑOZ, E. M. et al. Sweet-beverage consumption and risk of pancreatic cancer in the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC). American Journal of Clinical Nutrition, v. 104, n. 3, p. 760–768, 2016.

SCHERNHAMMER, E. S. et al. Sugar-sweetened soft drink consumption and risk of pancreatic cancer in two prospective cohorts. Cancer Epidemiology Biomarkers and Prevention, v. 14, n. 9, p. 2098–2105, 2005.

STEPIEN, M. et al. Consumption of soft drinks and juices and risk of liver and biliary tract cancers in a European cohort. European Journal of Nutrition, v. 55, n. 1, p. 7–20, 2016.

ZHANG, X. et al. Risk of colon cancer and coffee, tea, and sugar-sweetened soft drink intake: Pooled analysis of prospective cohort studies. Journal of the National Cancer Institute, v. 102, n. 11, p. 771–783, 2010.

Comentários

  1. Esse palestrante é irresponsável de tanta bobagem que diz. Já vi falando sobre o pão q quando vira torrada perde o glúten.

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    1. Ah! Essa do pão torrado está na lista para virar postagem também! É só abobrinha!

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