Pular para o conteúdo principal

Glifosato causa câncer?


Vocês devem ter esbarado pela Internet com postagens dizendo que o herbicida glifosato causa um monte de problemas de saúde, principalmente câncer. Devem ter visto também alguns abaixo-assinados virtuais pedindo a proibição da venda do veneno. Mas como funciona o glifosato e quais são as evidências científicas que correlacionam o herbicida com câncer?

O glifosato foi desenvolvido em 1970 e lançado no mercado quatro anos depois. A última patente do composto expirou no ano 2000 e agora ele é vendido por diversas empresas pelo mundo. O herbicida impede a produção de alguns aminoácidos (moléculas usadas na montagem das proteínas) na planta, que morre. O glifosato mata apenas plantas porque apenas elas têm a capacidade de produzir esses aminoácidos específicos, enquanto outros organismos não. Assim, o glifosato é letal apenas contra vegetais. Com o desenvolvimento de plantas transgênicas resistentes ao veneno, o uso do glifosato aumentou rapidamente e hoje o produto vende algo em torno de seis bilhões de dólares por ano.

Bem, e qual é a relação entre o glifosato e a incidência de câncer? Primeiro, quero deixar claro que eu apenas levantei as informações sobre câncer e não pesquisei sobre outras doenças (dizem que o herbicida está relacionado a autismo em crianças, mas não boto minha mão no fogo sobre isso). Também não estou levando em conta os danos ambientais e os desequilíbrios ecológicos causados pelo uso indiscriminado de pesticidas. Quero discutir apenas os dados sobre glifosato e câncer.

Dentro dos laboratórios, os dados sobre os efeitos do glifosato ainda são contraditórios. Por exemplo, o herbicida induz o crescimento de células de câncer de mama em cultura (THONGPRAKAISANG et al., 2013), embora não tenham sido realizados experimentos em animais. Por outro lado, o glifosato e seus derivados também são capazes de inibir o crescimento de células de câncer de próstata em cultura e poderia ser pensado como fonte para novos tratamentos no futuro (LI et al., 2013).

E no mundo real? Em 2005, um grupo de pesquisadores fez uma análise epidemiológica em agricultores nos Estados Unidos. Eles não encontraram evidências de uma associação entre a exposição ao glifosato e a incidência geral de câncer na população (DE ROOS et al., 2005). Os dados indicaram uma possível relação com a incidência de mieloma múltiplo, mas isso precisaria ser confirmado posteriormente com novos dados. Quase uma década depois, um novo estudo analisou dados de mais de 20 trabalhos e novamente não foi encontrada uma associação entre glifosato e câncer (MINK et al., 2012). Porém, esse trabalho apresenta um grande conflito de interesse, já que foi financiado pela empresa criadora do glifosato (que obviamente tem todo o interesse em provar que o herbicida não faz mal).

Recentemente, um grande grupo de especialistas trabalhando para a Organização Mundial de Saúde definiu o glifosato como “provavelmente cancerígeno”, com “evidências limitadas em humanos” (PORTIER et al., 2016). Esse relatório causou um grande reboliço na mídia não especializada e, em seguida, na população. Na comunidade científica, o relatório da OMS causou polêmica e foi considerado errado por parte dos cientistas. O relatório foi acusado de estar “errado” e de ser “um resumo incompleto e falho das evidências científicas” (TARONE, 2016).

Com os dados disponíveis, ainda é muito difícil definir se o glifosato é um risco para a saúde. Existem poucos dados epidemiológicos longos e financiados de modo independente que permitam uma conclusão segura. O desenvolvimento de plantas transgênicas resistentes combinado com o uso de pesticida foi importante para a revolução na produção agrícola de grãos. Na minha humilde opinião, proibir o uso do glifosato com base nas atuais evidências científicas de associação do herbicida com a incidência de câncer me parece um retrocesso tecnológico.

Referências:

DE ROOS, A. J. et al. Cancer incidence among glyphosate-exposed pesticide applicators in the Agricultural Health Study. Environmental Health Perspectives, v. 113, n. 1, p. 49–54, 2005.

LI, Q. et al. Glyphosate and AMPA inhibit cancer cell growth through inhibiting intracellular glycine synthesis. Drug Design, Development and Therapy, v. 7, p. 635–643, 2013.

MINK, P. J. et al. Epidemiologic studies of glyphosate and cancer: A review. Regulatory Toxicology and Pharmacology, v. 63, n. 3, p. 440–452, 2012.

PORTIER, C. J. et al. Differences in the carcinogenic evaluation of glyphosate between the International Agency for Research on Cancer (IARC) and the European Food Safety Authority (EFSA). Journal of Epidemiology and Community Health, v. 70, n. 8, p. 741–746, 2016.

TARONE, R. E. On the International Agency for Research on Cancer classification of glyphosate as a probable human carcinogen. European Journal of Cancer Prevention, p. DOI:10.1097/CEJ.0000000000000289, 2016.

THONGPRAKAISANG, S. et al. Glyphosate induces human breast cancer cells growth via estrogen receptors. Food and Chemical Toxicology, v. 59, p. 129–136, 2013.

Comentários

  1. Olá, David!
    Acho muito equivocado e precipitado afirmar que não haja uma relação direta entre a exposição de glifosato e a incidência de câncer embasado apenas nesses estudos, já que a grande maioria deles é financiado pelas empresas que comercializam esses agrotóxicos.
    Renomadas instituições de pesquisa, como o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) já se manifestaram sobre o assunto, se posicionando radicalmente contra o uso dessa substância. Recentemente, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), da OMS, publicou uma Monografia (resultado do estudo de um grupo de pesquisadores de 11 países, incluindo o Brasil) na qual classifica o glifosato juntamente com os inseticidas malationa e diazinona como possíveis agentes carcinogênicos para humanos (Grupo 2A).
    Além disso, a importância do uso de agrotóxicos e transgênicos para a produção de grãos é altamente questionável. Hoje já se sabe que essa ideia de que seja necessário o uso de agrotóxicos para combater a fome no mundo caiu por terra, segundo a Organização das Nações Unidas. E mesmo que essas substâncias tenham aumentado a produtividade das lavouras no período da Revolução Verde no passado, isso ocorreu a custo do que? De milhares de hectares de solo e corpos d’água contaminados? De muitas vidas comprometidas ou que se foram??
    Finalmente, mesmo que não houvesse nenhuma comprovação científica entre o uso de glifosato e a incidência de câncer, seria prudente e de bom senso, nos mínimo nos basearmos no Princípio da Precaução para não usarmos essa substância (que regem o Direito Ambiental, mas podem ser utilizados para a saúde humana). Esse princípio afirma que a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Entendo a sua preocupação em verificar a veracidade dos fatos, porém acho que temos que tomar muito cuidado para não fazermos apologia ao uso desses biocidas.

    ResponderExcluir
  2. Como eu disse, não queria entrar no mérito meio ambiente-transgênicos-etc. Minha opinião pessoal é que os transgênicos foram essenciais para o aumento da produtividade e para a criação de alimentos funcionais, mas isso não vai resolver o problema da fome (o grande agronegócio não está preocupado com isso). O que eu tentei deixar claro é que não existe nenhuma prova concreta que o glifosato cause câncer. Logo não existe razão para justificar sua proibição com esse argumento. Agora, lutar pela proibição do uso de biocidas com base no impacto ambiental é uma luta justa (e difícil).

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Não, a fosfoamina não é (ainda) a cura do câncer

Em agosto desse ano, uma reportagem do portal G1 mostrou a luta de pacientes com câncer na justiça para receber cápsulas contendo o composto fosfoamina (na verdade, fosfoetanolamina) que supostamente curaria a doença. O “remédio” era produzido e distribuído pelo campus da Universidade de São Paulo na cidade de São Carlos, mas a distribuição foi suspensa por decisão da própria reitoria, já que o composto não é registrado na ANVISA (todo remédio comercializado no país deve ser registrado) e não teve eficiência comprovada. Porém, alguns dos pacientes tratados com a fosfoamina relatam que foram curados e trazem exames e outras coisas para provar. Segundo o professor aposentado Gilberto O. Chierice (que participou dos estudos com a substância), “A fosfoamina está aí, à disposição, para quem quiser curar câncer”. Mas, vamos devagar, professor Gilberto; se a fosfoamina realmente é a cura para o câncer, por que não foi pedido o registro na ANVISA? O Governo Federal poderia produzir gran

Não, suco de melão São Caetano não é a cura do câncer

Recebi pelo Facebook um link para uma postagem do blogue Cura pela Natureza . Lá é descrito o poder de uma planta medicinal capaz de curar o câncer, controlar o diabetes e, de quebra, fortalecer a imunidade do corpo. Sinistro, né? A planta em questão é chamada de melão São Caetano ou melão amargo. Conhecida cientificamente como Momordica charantia , essa planta faz parte da família Cucurbitaceae, junto com outras plantas famosas, como a abóbora, o pepino e a melancia. Ela cresce bem nas áreas tropicais e subtropicais da África, Ásia e Austrália, e foi trazida ao Brasil pelos escravos. O texto cita o Dr. Frank Shallenberger, dos Estados Unidos, que seria o descobridor dos efeitos medicinais da planta. Fui então atrás das pesquisas publicadas pelo Dr. Shallenberger para saber mais sobre os poderes do melão São Caetano. E descobri que ele nunca publicou nenhum trabalho científico sobre a planta (na verdade, ele nunca publicou qualquer coisa!). Como que a

Rapte-me, Camaleoa!

Recebi recentemente pelo Whatsapp um vídeo do Instagram mostrando um camaleão escalando uma série de lápis de cor diferentes. Cada vez que ele encostava a pata em um novo lápis, a cor dele mudava rapidamente, de acordo com a cor do lápis. Muito legal! Pena que não é verdade. O vídeo era originalmente de um perfil de um camaleão de estimação e o responsável alterou o vídeo digitalmente, incluindo essas mudanças de cores rápidas no bicho. Ele deixou um aviso no vídeo original, explicando que era computação gráfica e que tinha feito só para ser divertido. Mas isso não impediu outras pessoas de retirarem o aviso e divulgarem pela Internet. Fazer o quê? Mas aqui embaixo tem um vídeo mostrando como de fato um camaleão muda de cor. Reparem duas coisas: 1) o vídeo está acelerado dez vezes, ou seja, a mudança de cor é lenta; e 2) ficando mais amarelo avermelhando, a última coisa que ele está fazendo é ficar mais camuflado. Eu sempre me perguntei como o camaleão sabia que cor ele tinha que esco