Pular para o conteúdo principal

[Chute do Nobel T1E1] A microbiota intestinal a caminho do Prêmio Nobel 2019


Em uma simples pesquisa nos principais buscadores disponíveis na internet sobre microbiota intestinal já é possível identificar suas inúmeras relações com as principais doenças que assolam a humanidade, como a obesidade, diabetes, distúrbios neuropsiquiátricos e o câncer. Em outros tempos chamada de flora intestinal, a microbiota foi caracterizada como um conjunto de microorganismos benéficos (ou seja, não relacionados ao desenvolvimento de doenças) que residem no intestino de hospedeiros humanos e outros animais. Durante muitos anos, muitas pesquisas foram elaboradas para descrever as inúmeras benfeitorias aos seres humanos, como o auxílio na metabolização dos alimentos, proteção contra substâncias potencialmente perigosas, auxílio na absorção dos nutrientes e com melhorias na imunidade. Diante de tamanha importância fisiológica, um forte candidato a receber o Prêmio Nobel em 2019 é o pesquisador médico e microbiólogo norte-americano Jeffrey Ivan Gordon, pioneiro nos estudos do microbioma humano e com enorme contribuição à ciência em desmistificar o papel da microbiota intestinal na saúde e nas doenças humanas.

Diversas linhas de pesquisa ao redor do mundo buscam melhorias em quadros de doenças humanas utilizando como estratégia a manipulação e potencialização da microbiota intestinal, seja por introdução de novos microorganismos auxiliares via dieta ou utilizando alimentos complementares direcionados à microbiota (ACDM). A indústria alimentícia já utiliza há algum tempo lactobacilos e outros microorganismos benéficos para auxiliar no controle de constipações e melhorias do trânsito intestinal. Entretanto não somente a constipação tem atraído o foco dos pesquisadores. É sabido também que a desnutrição afeta a quantidade e qualidade dos microorganismos dispostos no intestino de crianças, o que dificulta ainda mais a absorção dos nutrientes fundamentais para o desenvolvimento ósseo, motor e cognitivo. Em alguns de seus trabalhos mais recentes, Gordon estudou a importância da microbiota de bebês na metabolização de um derivado do leite materno para observação de possíveis benefícios na biologia do desenvolvimento ósseo. Em outro trabalho, também publicado em 2019, comprovou que a utilização de ACDMs está associada a mediadores de crescimento, neurodesenvolvimento e função imunológica em crianças. No atual cenário mundial, onde a fome e os problemas relacionados ao subdesenvolvimento ainda representam enorme risco às populações, estes estudos se tornam cada vez mais importantes para atenuar este sério quadro de saúde pública. O estudo inicial de Gordon frutificou e diversos outros pesquisadores embrenharam no estudo das alterações de microbiota, correlacionando-as aos principais problemas de saúde. Muitas evidências apontam as alterações no sistema gastrointestinal com o transtorno do espectro autista, onde cerca de 70 % dos pacientes diagnosticados apresentam tais complicações da microbiota intestinal. Além disso, outros dois pesquisadores norte-americanos, Curtis Huttenhower e Dirk Geverse, promulgaram que a prevalência dos sintomas gastrointestinais em razão da disbiose (alteração na microbiota) apresenta forte correlação direta com a gravidade do autismo, e que as intervenções que visam corrigir estes quadros são importantes, principalmente no cenário atual onde não há disponível nenhum medicamento específico para o tratamento do autismo.

Além de suas outras funções, a microbiota intestinal constitui barreira de defesa contra uma variedade de substâncias tóxicas externas e propicia restauração das funções normais do organismo. Alterações na composição perfeita desta barreira pode influenciar e levar a carcinogênese, ou seja, na geração de um tumor. As alterações podem ser adquiridas pela proliferação errática das células, perturbações do sistema imunológico e alterações metabólicas. Para Wendy S. Garrett, pesquisador norte-americano, explorar os fatores ambientais envolvidos na carcinogênese e traduzi-los em ferramentas de diagnóstico e tratamento são áreas de notável interesse pela comunidade científica.

No contexto atual, onde ainda evidenciamos problemas relacionados ao subdesenvolvimento como a fome, desnutrição, doenças tropicais e outras doenças negligenciadas pelos sistemas de saúde, é fundamental o estudo e desenvolvimento de estratégias de prevenção à saúde. Os estudos das implicações da colonização de microorganismos no intestino humano e suas consequentes melhorias em saúde devem ser fomentados diante das suas múltiplas utilidades.

Esse texto foi escrito pelo aluno de mestrado João Raphael Leite Castello Branco Maia como parte da avaliação da disciplina "Prêmios Nobel das Ciências Farmacêuticas" do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenada pelo professor David Majerowicz, junto com os professores Renato C. Sampaio e Heitor A. de Paula Neto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não, suco de melão São Caetano não é a cura do câncer

Recebi pelo Facebook um link para uma postagem do blogue Cura pela Natureza . Lá é descrito o poder de uma planta medicinal capaz de curar o câncer, controlar o diabetes e, de quebra, fortalecer a imunidade do corpo. Sinistro, né? A planta em questão é chamada de melão São Caetano ou melão amargo. Conhecida cientificamente como Momordica charantia , essa planta faz parte da família Cucurbitaceae, junto com outras plantas famosas, como a abóbora, o pepino e a melancia. Ela cresce bem nas áreas tropicais e subtropicais da África, Ásia e Austrália, e foi trazida ao Brasil pelos escravos. O texto cita o Dr. Frank Shallenberger, dos Estados Unidos, que seria o descobridor dos efeitos medicinais da planta. Fui então atrás das pesquisas publicadas pelo Dr. Shallenberger para saber mais sobre os poderes do melão São Caetano. E descobri que ele nunca publicou nenhum trabalho científico sobre a planta (na verdade, ele nunca publicou qualquer coisa!). Como que a

Não, a fosfoamina não é (ainda) a cura do câncer

Em agosto desse ano, uma reportagem do portal G1 mostrou a luta de pacientes com câncer na justiça para receber cápsulas contendo o composto fosfoamina (na verdade, fosfoetanolamina) que supostamente curaria a doença. O “remédio” era produzido e distribuído pelo campus da Universidade de São Paulo na cidade de São Carlos, mas a distribuição foi suspensa por decisão da própria reitoria, já que o composto não é registrado na ANVISA (todo remédio comercializado no país deve ser registrado) e não teve eficiência comprovada. Porém, alguns dos pacientes tratados com a fosfoamina relatam que foram curados e trazem exames e outras coisas para provar. Segundo o professor aposentado Gilberto O. Chierice (que participou dos estudos com a substância), “A fosfoamina está aí, à disposição, para quem quiser curar câncer”. Mas, vamos devagar, professor Gilberto; se a fosfoamina realmente é a cura para o câncer, por que não foi pedido o registro na ANVISA? O Governo Federal poderia produzir gran

Dr. José Roberto Kater e o ovo: vilões ou mocinhos?

Ontem, eu recebi pelo Facebook um vídeo de uma entrevista com o Dr. José Roberto Kater onde ele comenta sobre os benefícios do ovo na alimentação. Porém, algumas coisas me soaram um pouco, digamos, curiosas (na verdade, em pouco mais de três minutos de vídeo poucas coisas pareceram normais (o vídeo completo está disponível no fim do texto)). O Dr. Kater é, segundo a Internet, médico, obstetra, nutrólogo, antroposófico (a medicina antroposófica é um ramo alternativo com base em noções ocultas e espirituais), homeopata, acupunturista e com mais algumas outras especialidades. Porém, não é cientista, já que não tem currículo cadastrado na Plataforma Lattes (do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento, CNPq) ou assina qualquer artigo científico indexado em banco de dados internacional. Para mim, o cara pode dizer que é o Papa, eu não vou acreditar nele de primeira. As informações científicas estão disponíveis e eu fui pesquisar para entender se o Dr. Kater é um visionário ou ch