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[Blogue da Lídia] Maconha medicinal: por que não?

No dia 8 de junho foi aprovado pela Câmara o projeto de lei 399, que autoriza o plantio da Cannabis sativa para fins medicinais. O projeto foi atacado por muitas figuras públicas e carrega a acusação de que favorecerá a produção de maconha e aumentará o número de dependentes químicos no país, tornando mais fácil o acesso para uso recreativo da planta. Mas, independente dos argumentos utilizados para barrar o avanço do PL, ainda há muita desinformação sobre a cannabis e seus usos.

Primeiramente devemos entender que a Cannabis sativa é apenas uma planta e, como a maioria desses seres, possui vários componentes químicos que interagem com nosso organismo quando ingerida. Um desses componentes, o THC (tetrahidrocanabinol), é responsável pelos efeitos psicoativos (que alteram o estado e a consciência de uma pessoa) experimentados por usuários da planta. No entanto, o THC não é nem mesmo o principal componente da Cannabis, que contém componentes usados em pesquisas para tratamento de epilepsia refratária, Alzheimer, autismo, entre outras condições.

Componentes químicos

A Cannabis possui cerca de 400 componentes químicos, entre eles 60 canabinóides além de flavonoides (responsáveis pelos odores que a planta exala) e terpenos (encarregados da ação antioxidante). Os canabinóides não têm necessariamente a ver com a Cannabis, eles são uma classe de substâncias produzidas por algumas plantas e pelo próprio organismo humano. Os canabinóides produzidos pelo organismo humano são chamados de endocanabinóides, enquanto os produzidos pelas plantas são chamados de fitocanabinóides.

Por que o nome dessas substâncias é parecido com o da Cannabis?

Isso acontece porque elas interagem com o sistema endocanabinóide - um sistema do corpo humano descoberto recentemente graças ao estudo da maconha e de seus componentes - e se ligam aos seus receptores, causando determinados efeitos. Nem todos os efeitos são ruins. O CBD (ou canabidiol) é uma substância canabinoide presente nesta planta, e possui uma série de efeitos terapêuticos. O canabidiol é usado, sobretudo, para tratar pacientes com epilepsia refratária, embora ainda não entendamos como exatamente ele diminui o número de convulsões.


Fórmula química do canabidiol, um componente químico da maconha

Atualmente, é possível isolar um componente de uma planta e utilizá-lo para fins medicinais. Podemos isolar, por exemplo, o canabidiol e fazer uso apenas dele, sem o THC, que induz efeitos alucinógenos. No caso da Cannabis, após a extração do extrato completo (que contém todas as substâncias da maconha), o canabidiol é separado dos demais componentes através da técnica de cromatografia, que separa os componentes com base em seu peso molecular. Após isso, ainda passa por alguns processos que eliminam todas as impurezas restantes e garantem que o composto seja isolado Por isso, um medicamento produzido através de um dos componentes da Cannabis sativa não vai levar o paciente a experimentar os efeitos da droga produzida com a mesma planta.

Mas por que a maconha é vista como vilã?

Um dos efeitos mais temidos causados pela Cannabis é a dependência química, apesar de estudos comprovarem que a probabilidade de uma pessoa virar dependente química a partir do primeiro uso é de 7,39 %. Se considerarmos que no álcool a probabilidade é de 28,90 % e na nicotina 15,91 % entendemos que a Cannabis apresenta um potencial de causar dependência menor que duas drogas lícitas, ou seja, cujos consumos são legalizados.

Os efeitos psicoativos se devem ao fato do THC interagir com os receptores do sistema endocanabinoide - aquele que falamos lá em cima - que ficam em algumas áreas do cérebro. Dessa forma, o THC consegue acesso a áreas como o hipocampo (responsável pela memória), o cerebelo (responsável pela percepção espacial), córtex cerebral (área responsável pelas funções cognitivas e pelo processamento de informação) e os gânglios da base (relacionados a movimentação). Ao atuar sobre esses locais, induz os efeitos de perda de memória, de mudanças de humor, alteração sobre a percepção e consciência, entre outros.


Fórmula química do THC (tetrahidrocanabinol)

Logo, é possível dizer que o uso a longo prazo de substâncias que contenham alto teor deste canabinóide causa efeitos negativos, principalmente no sistema nervoso. No entanto, como foi mencionado acima, atualmente podemos isolar os componentes desejados e utilizá-los separadamente, o que significa que os medicamentos à base de Cannabis não levam altas concentrações do THC em suas fórmulas.

Tratamentos que utilizam a Cannabis

Para finalizar, é interessante mencionar que existem trabalhos que utilizam a Cannabis para o tratamento de algumas doenças como a epilepsia refratária (o tipo de epilepsia que resiste ao tratamento convencional), enjôos e dores adversos da quimioterapia, Alzheimer e autismo. Vale ressaltar que o estudo dessa planta para uso medicinal ainda carece de muitas pesquisas pois, em geral, encontram impedimentos nas leis e no preconceito da sociedade. Ainda assim, é utilizada por muitos pacientes a um custo altíssimo devido ao fato de precisar ser importada.

Nos links abaixo, deixo algumas indicações de pesquisadores da área e exemplos de pacientes que fazem uso desse medicamento.

Matérias sobre pacientes que utilizam a Cannabis medicinal

O uso do Canabidiol no tratamento de saúde

O uso do Canabidiol em crianças com epilepsia

2º Encontro Visa em Foco: o uso medicinal da Cannabis sp. no Brasil em debate

Bibliografia:






Essa postagem foi editada por Gustavo Martins.

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