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[Blogue do João] A ciência é produzida pela observação (ou como o flúor foi parar nas nossas águas?)

Para quem vive fora dos ambientes universitários é possível imaginar que a ciência se faz de uma maneira muito sistemática: a pessoa veste o jaleco, prende o cabelo, coloca os óculos no rosto e... pronto! Temos um cientista!

Apesar disso, não é bem assim. Eu gostaria que você, leitor, ao terminar o texto, possa imaginar que qualquer um de nós pode ser um cientista independente da vestimenta. A ciência se faz na curiosidade, na investigação, na busca do porquê.

E antes de iniciar o texto contando a história do flúor, é importante dizer que a ciência é feita pelo compartilhamento da informação. Por exemplo, se eu quero produzir uma novela, é preciso de: (1) atores; (2) produção para a novela; (3) diretor de novela; (4) pessoas que transmitam via satélite, entre outros. O mesmo se faz com a ciência.

Em 1901, Frederick McKay, um jovem dentista, começou a trabalhar no Colorado. Para o seu espanto, ele observou que muitos dos seus pacientes apresentavam manchas marrons nos dentes. Às vezes as manchas eram tão escuras que pareciam que os dentes foram cozidos em chocolate ao leite.

Muito curioso sobre essas manchas, ele decidiu procurar em livros para ver se alguém já havia descrito isso. Após muitos anos de pesquisa e sem achar nada, ele convidou seu amigo Greene Vardiman Black, em 1909, para ajudá-lo a entender o que se passava.

Para se ter ideia, o problema de dente manchado (ou fluorose dentária, como viria a ser chamada mais tarde) era tão sério, que os pesquisadores descobriram que cerca de 90 % das crianças do Colorado, em 1909, tinham manchas marrons em seus dentes, algo que viria a causar má formação nos dentes por todo o restante da vida. Esses dentes marrons não conseguiam cair naturalmente.

Em 1923, McKay foi a outro estado dos Estados Unidos tratar de uma criança que começou a apresentar manchas marrons nos dentes recentemente. Ao perguntar aos pais o que a criança tinha feito de diferente nos últimos meses, os pais disseram que a cidade tinha construído dutos para fornecer água quente.

Ele tinha descoberto parte do problema, mas não sabia o motivo ainda.

Nesse mesmo ano de 1923, McKay visitou Bauxite, uma cidade em que muitas pessoas tinham dentes manchados, e lá conheceu Churchill. Churchill era dono de uma companhia de alumínio que usava a água do lago para sua produção. O empresário, junto de McKay, fez uma análise e observou que a quantidade de flúor era gigante.

Churchill pediu a McKay para que o enviasse amostras de água de lagos de outras cidades em que as pessoas apresentavam dentes manchados. Ele relatou a McKay que a quantidade de flúor em todas essas amostras era enorme.

McKay tinha então encaixado o quebra cabeça junto de Black e Churchill: o excesso de flúor tornavam os dentes manchados e resistentes.

A partir dos estudos de McKay e Black, Henry Trendley Dean, um outro cientista, quis avaliar o quanto de flúor era seguro para se tem num lago sem que as pessoas apresentassem os dentes manchados. Ele determinou, através de pesquisas, uma faixa segura de flúor em um volume d’água.

Em 1945, mais de 20 anos após a real descoberta da origem dos dentes manchados, Dean, junto da prefeitura de uma cidade chamada Grand Rapids, sugeriu que a água da cidade tivesse flúor adicionado à faixa que ele tinha determinado seguro anteriormente.

Durante cerca de 15 anos, os casos de perda de dente naquela cidade foram monitorados. Os casos de cárie e perda dentária caíram mais de 60 %. A partir dessa época, a pasta de dente teve o flúor adicionado em sua composição, além das águas de várias cidades tem o flúor implementado também.

No Brasil, a primeira cidade a ter flúor adicionado na água foi no Espírito Santo, em 1953. A sugestão de adicionar flúor à água tinha vindo do X Congresso (lugar em que pesquisadores de um assunto se reúnem para debater novas descobertas) Brasileiro de Higiene em 1952. Após o Espírito Santo, cidades de São Paulo e Rio Grande do Sul tiveram flúor adicionados em suas águas.

Em 1970, o Governo Federal decidiu começar a adicionar flúor nas águas dos rios de todas as cidades do Brasil, a começar por São Paulo. Após estudos, foi percebido, assim como nos Estados Unidos, que a quantidade de crianças com cáries caiu.


No gráfico, dá para perceber que desde o início da implementação do flúor nas águas da capital de São Paulo em 1970, o número de casos de pessoas com cárie caiu.

O Governo Federal tornou obrigatório que todas as águas no Brasil deveriam ter flúor, na quantidade que Dean recomendou, desde 1974. Ainda assim até 1996, somente 42,20 % das águas no Brasil estavam com flúor.


Algumas cidades ainda não colocam flúor nas suas águas. Apesar disso, elas já têm flúor naturalmente nas suas águas.
 
Sendo assim, a história da adição do flúor internacional e nacional foi descrita. Eu, particularmente, achei a história bem interessante, porque é impensável que em 2020 as pessoas percam o dente por não terem flúor nas pastas ou na água, mas essa prática só começou a ser adotada pelo governo brasileiro em 1953, cerca de 70 anos atrás. E mais do que isso, a implementação obrigatória só começou em 1974, ou seja, 46 anos atrás.

Se você, leitor, chegou até aqui, peço que reflita sobre como a ciência é feita juntando fragmentos. Hoje, todo o mundo usa o flúor, mas a pesquisa começou com duas pessoas em 1909, numa cidade no Colorado, e passou por um dono de indústria de alumínio (Churchill), até pelo presidente da Unidade de Higiene Dental do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (Dean).

A ciência é como um grande quebra cabeça. Cada um de nós observa e fica curioso a respeito de uma pequena peça. Para montar a imagem, nós todos trocamos informação e montamos o quebra cabeça. A produção científica para uso individual não tem valor, não serve de nada.

Por último, deixo essa imagem.

 
Referência Bibliográfica:

Esse texto foi editado por David Majerowicz e Gustavo Martins

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