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[Blogue da Laís] Vinagre como desinfetante?



A palavra “vinagre” é oriunda do idioma Francês e significa “vinho agre” ou “vinho azedo”, ainda que ele não seja apenas obtido através do vinho, mas também de outras matérias primas, como frutas, cereais, mel e vegetais (OLIVEIRA et al., 1987). Historicamente, o vinagre era usado como condimento muito aproveitado devido às suas propriedades estimulantes, que aumentam a ação dissolvente e favorece a digestão. Spinosa (2002) diz que este era oferecido como bebida às classes mais pobres da população, como soldados, camponeses e viajantes, sendo considerada uma bebida inferior, já que resultava de alguma falha no preparo do vinho. Segundo RIZZON & MENEGUZZO (2002) e ESPINOSA (2002), ele era usado para tratar de disfunções respiratórias, feridas, náuseas, lepra e úlceras, devido às suas propriedades desinfetantes e anti inflamatórias. Nesse contexto, em épocas de guerra, o vinagre era recomendado aos soldados, para prevenir possíveis contaminações com micróbios e para desinfetar e temperar os alimentos.

Primeiramente, é importante contextualizar sobre o processo de fabricação do vinagre. Essa produção ocorre por meio de dois processos de reações químicas feitas por micro-organismos, a fermentação alcoólica e a acética. Nessa lógica, a matéria prima inicial para a produção de vinagre é uma açúcar (a glicose), e caso o amido seja usado, como ele é um polissacarídeo, é preciso ser quebrado para se tornar um açúcar mais simples.

A fermentação alcoólica é um processo anaeróbico, ou seja, acontece sem oxigênio, em que ocorre a transformação de açúcares em etanol (álcool) e dióxido de carbono (CO2). Em seguida, ocorre a fermentação acética que transforma o etanol em ácido acético (o vinagre propriamente dito). Essa reação ocorre por meio de microrganismos específicos, chamadas bactérias acéticas. As bactérias do tipo Acetobacter e Gluconobacter são as mais utilizadas para a produção de vinagre, devido à sua alta capacidade de transformar o etanol em ácido acético e sua forte resistência a eles (IIDA; YASUO; HORINOUCHI, 2008).


Nesse sentido, de acordo com a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária), o vinagre para consumo deve ter entre 4 % e 6 % de ácido acético. A legislação brasileira estabelece como mínimo 4 % de ácido acético. Esse é um ácido fraco que possui ações antimicrobianas.

O vinagre é popularmente usado como flavorizante, que é adicionado a um alimento para lhe conferir sabor, e como conservante, apesar de algumas bactérias e fungos serem tolerantes a esse ácido (FRANCO e LANDGRAF, 1996).

Estudos apontam que o vinagre possui capacidade de matar bactérias e que, dependendo da matéria prima usada para produzi-lo, essa propriedade pode ser aumentada ou reduzida. Como exemplo, VEJAYAKIMAR e HALL (2002) testaram vinagre de maçã, vinagre de vinho branco e suco de limão diluídos e constataram que o vinagre de vinho branco a 35 % foi o mais efetivo na redução de bactérias do que o de maçã e o suco de limão. Do mesmo módolo, SEGUN e KARAPINAS (2004) avaliaram a eficácia do suco de limão, vinagre e a mistura de limão com vinagre na eliminação de Salmonella typhimurium inoculado artificialmente em rúcula e cebola, conseguindo reduções significativas principalmente na mistura do vinagre com o limão. Com base em estudos que levantam a hipótese da possível ação germicida do vinagre, acabam sendo divulgados de maneira duvidosa inúmeras alternativas do seu uso como como desinfectante, para locais físicos, materiais e equipamentos, e como antisséptico para as mãos e até mesmo para a boca. Porém, a maioria dos estudos foram feitos in vitro (ou seja, em culturas de bactérias em laboratório) e não têm exatidão sobre quais microrganismos especificamente cada vinagre possui a ação de desinfecção e existem métodos eficazes e recomendados pelo Ministério da Saúde para limpar as mãos, diferente do uso desse flavorizante.

Nesse contexto, a higienização das mãos é uma das principais formas de prevenir-se contra doenças. A recomendação do Ministério da Saúde é mantermos nossas mãos higienizadas lavando-as com água e sabão e, quando não for possível, usar álcool à 70 %. Segundo o Conselho Federal de Química, o álcool age rapidamente sobre bactérias, vírus e fungos. O órgão também aponta que o álcool é um eficiente desinfetante de superfícies e objetos, além de anti séptico de pele, que deve ser usado em concentração próxima a 70 %, para que assim ocorra a desestruturação de proteínas e gorduras da membrana da célula, e a consequente destruição do microrganismo.

Deste modo, é importante entender que devido à situação mundial, inúmeras fake news estão sendo veiculadas facilmente e uma delas relatava a possibilidade de substituir o álcool 70 % por vinagre. Assim, como argumentado neste texto, o vinagre possui como função principal o seu uso em alimentos, tanto como tempero como conservante. Portanto, seu emprego como microbicida deve ser suspenso e os métodos corretos estipulados pelo Ministério da Saúde devem ser feitos.

Referências:




MARQUES, F.P.P. et al. 2010. Padrões de identidade e qualidade de fermentados acéticos comerciais de frutas e vegetais. Ciên. Tecnol. Aliment. 30 (supl. 1): 119–126.

PEREIRA, P.S. et al. 2013. Eficácia do ácido acético no controle de algumas espécies de plantas daninhas. Enciclopédia Biosfera 9 (16): 2512:2523. 

RIZZON, L.A., MENEGUZZO, J., 2002. Elaboração de vinagre. Embrapa Uva e Vinho.

TERRA, R.V., LEITE, S.Q.M., 2017. Estudos culturais sobre a produção de vinagre para articular saberes escolares, científicos e populares: uma educação química com enfoque CTS/CTSA. In: XI Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências.

UTYAMA, I.K.A. 2003. Avaliação da atividade antimicrobiana e citotóxica in vitro do vinagre a ácido acético: perspectiva na terapêutica de feridas. Dissertação de Mestrado em Enfermagem, Universidade de São Paulo. pp. 148.

VELOSO, C.L. 2013. Dossiê técnico: Sistema de produção do vinagre. Serviço Brasileiro de Respostas Técnicas. pp.21.

Essa postagem foi editada por David Majerowicz e Gustavo Martins.

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