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[Blogue do PJ] Fundamentos de Farmacologia (Parte 3): Farmacocinética e os parâmetros de ADME


Bem-vindos à terceira publicação do blog sobre fundamentos de farmacologia. O tema abordado dessa vez é a farmacocinética, assunto que está intimamente ligado às vias de administração de fármacos, que foi o tema do texto anterior.

Farmacocinética é a área da farmacologia que estuda o movimento dos fármacos pelo organismo, levando em consideração o que o corpo pode fazer com eles. De maneira geral, os estudos farmacocinéticos são responsáveis por garantir a maior qualidade possível nos quatro processos principais que um fármaco sofre no corpo humano: absorção, distribuição, metabolização e excreção. Dentro da farmacocinética, quando esses quatro processos são analisados, recebem o nome de propriedades de ADME.

A primeira propriedade de ADME é a absorção do fármaco, que consiste em fazê-lo chegar até o sangue, para que ele possa ser distribuído pelo corpo, ou pelo local de ação (caso seja um fármaco de uso local, como na pele). Os principais fatores que influenciam na absorção são as propriedades químicas do fármaco, a forma farmacêutica (ou apresentação do medicamento: comprimido, xarope, colírio etc.) e a via de administração escolhida (como o medicamento é tomado).

Tirando a via intravenosa, qualquer outra via de administração depende da passagem do fármaco através de células (como no estômago, ou no intestino) antes de chegar na corrente sanguínea. As membranas dessas células funcionam como barreiras, e os fármacos possuem três modos principais de atravessá-las, são eles:

  • Difusão passiva: o fármaco consegue passar pela membrana da célula, indo de uma região de alta concentração de fármaco para uma de baixa concentração.
  • Difusão facilitada: o fármaco se liga a uma molécula que o auxilia a passar pela membrana da célula.
  • Transporte ativo: a célula gasta energia para transportar o fármaco através da membrana.

Além disso, o fármaco também pode passar por entre as células, através de espaços microscópicos entre elas, evitando a membrana da célula (transporte paracelular).

Quanto menor o fármaco, mais fácil sua passagem pelas membranas celulares. Além disso, moléculas apolares, ou seja, que não são solúveis em água, também atravessam as barreiras mais facilmente. A via intravenosa não possui fase de absorção, pois o fármaco é liberado diretamente no sangue, indo automaticamente para a fase de distribuição.

A fase de distribuição se inicia quando o fármaco chega no sangue e é levado até o seu local de ação. As moléculas do fármaco presentes no sangue, após a etapa de absorção, são distribuídas de maneira desigual pelo corpo, onde as partes com maior fluxo de sangue recebem uma maior quantidade do fármaco. De maneira geral, as regiões gordurosas e com grande massa muscular, como as pernas e os braços, possuem menor fluxo sanguíneo do que órgãos essenciais como pulmão, fígado, coração e cérebro.

Possivelmente, o fator que mais influencia na fase de distribuição de um fármaco é seu coeficiente de ligação às proteínas do sangue (plasmáticas), visto que as moléculas de fármaco lá podem ser encontradas de duas maneiras: moléculas livres, que estão disponíveis para entrar nos tecidos e gerar seu efeito, e moléculas ligadas às proteínas , que estão “armazenadas” no sangue, para serem utilizadas depois pelo organismo.

Embora as moléculas de fármaco no sangue sejam distribuídas para praticamente todos os tecidos do corpo, os fármacos são seletivos, e costumam agir em tecidos específicos. O termo tecido, dentro da área da saúde, se refere a um conjunto de células, geralmente similares. A explicação para a seletividade dos fármacos será dada na quarta (e última) publicação dessa série, que terá como tema a farmacodinâmica. Por agora, continuaremos a falar sobre farmacocinética.

Uma coisa importante para se atentar com relação à distribuição de fármacos, é a possibilidade de interação medicamentosa (entre diferentes fármacos), devido a uma disputa de ligação pelas proteínas do sangue. Para visualizar melhor a situação, pense em dois fármacos recebidos ao mesmo tempo, sendo que ambos se ligam à albumina, que é uma das principais proteínas plasmáticas. Claramente haverá uma disputa de ligação entre os dois, e ambos terão uma taxa de ligação reduzida, deixando mais moléculas de fármaco livres no sangue. Uma situação desse tipo interfere, não só na fase de distribuição, mas também nas fases de metabolização e excreção.

A etapa de excreção tem como objetivo expulsar moléculas estranhas ao corpo, também chamadas de xenobióticos. Fármacos costumam ser xenobióticos, já que não são moléculas naturais do organismo, e por isso devem ser expulsos de alguma forma, geralmente pela urina. A urina é a principal via de excreção do organismo humano e através dela é possível identificar todos os medicamentos e drogas que uma pessoa utiliza.

Os rins são os órgãos mais importantes da etapa de excreção, uma vez que eles são os responsáveis por filtrar o sangue e, através desse processo, gerar a urina. Moléculas apolares, ou seja, insolúveis em água, são mais dificilmente filtradas pelos rins, o que significa que é mais difícil retirar esse tipo de molécula do sangue. Inicialmente isso pode parecer sem importância, mas lembre-se que a maioria dos fármacos possui caráter apolar, o que prejudicaria a excreção dos mesmos, e é aí que entra a fase de metabolização.

Na etapa de metabolização, os fármacos sofrem alterações químicas com o objetivo de transformá-los em moléculas mais solúveis em água. Normalmente essas transformações químicas tornam o fármaco inativo ou quase inativo. Entretanto existe uma classe de moléculas chamada de pró-fármacos que funciona da maneira oposta. Os pró-fármacos são moléculas inicialmente inativas ou semi-inativas, e que quando são metabolizadas, passam a exercer um efeito terapêutico mais intenso.

O principal órgão responsável pela metabolização é o fígado, embora não seja o único capaz de realizar esse processo. A capacidade de metabolização do fígado é devida a produção de proteínas da família das CYP450, que são enzimas responsáveis pelo metabolismo de fármacos e outras substâncias. (Já falamos sobre proteínas e enzimas aqui no blogue.)

Alguns fármacos são capazes de alterar o funcionamento das enzimas CYP450, tanto aumentando quanto diminuindo sua atividade. A partir disso surgem algumas interações medicamentosas perigosas, como a da eritromicina, antibiótico que costuma inibir a metabolização de alguns anti-inflamatórios. Com a metabolização diminuída, os anti-inflamatórios demorarão mais para serem excretados, o que pode gerar um acúmulo desses fármacos no corpo e um possível efeito tóxico. O álcool e a idade também diminuem a atividade das enzimas do fígado e podem gerar casos parecidos de toxicidade por medicamentos.

Após a metabolização, os fármacos inativos são mandados para os rins, onde passam pelo processo de filtração e são eliminados na urina. Assim como o fígado, os rins funcionam com menor eficiência conforme se envelhece, além disso, o baixo consumo de água prejudica o funcionamento desses órgãos, o que pode gerar toxicidade por um acúmulo de xenobióticos. Portanto, beba água!

Assim finalizamos a terceira parte sobre fundamentos de farmacologia aqui do blog. A próxima publicação, como já foi dito, será a última e terá como tema a farmacodinâmica. Fiquem ligados!

Acesse a parte 1, sobre o que é um medicamento, aqui.

Acesse a parte 2, sobre as vias de administração de fármacos, aqui.


Essa postagem foi editada por David Majerowicz e Gustavo Martins.

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