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[Blogue do PJ] Fundamentos da Farmacologia (Parte 4): Farmacodinâmica e mecanismo de ação dos fármacos

Bem-vindos à quarta, e última, publicação sobre os fundamentos de farmacologia aqui do blogue. Nos textos anteriores, abordamos diversos temas, como os conceitos de medicamento e fármaco, as vias de administração e os parâmetros farmacocinéticos. Desta vez, como último tema, falaremos sobre a farmacodinâmica, elemento essencial dentro da farmacologia e que diz muita coisa sobre como funcionam os medicamentos que tomamos no dia a dia.

A farmacodinâmica é uma área da farmacologia que se contrapõe, mas ao mesmo tempo complementa a farmacocinética. Isso se dá pois a farmacocinética tem como foco o que o corpo é capaz de fazer com o fármaco, e a farmacodinâmica foca no que o fármaco pode fazer com o corpo. Os estudos farmacodinâmicos buscam compreender quais os efeitos do fármaco no organismo e como esses efeitos são gerados.

Para determinar os efeitos do fármaco, costumam ser feitos estudos do tipo Dose x Efeito, ou Concentração x Efeito. Através disso, é feita uma análise do efeito gerado pelo fármaco, comparando com a dose ou a concentração utilizada. Dessa forma, são extraídas informações sobre o fármaco: sua potência e eficácia.

Gráfico Dose x Efeito, indicando a potência e a eficácia

A potência de um fármaco é definida pela dose ou concentração necessária para que ele gere 50% do seu efeito máximo. De maneira geral, fármacos mais potentes geram efeitos mais rápidos, pois exigem que uma menor quantidade de moléculas chegue no local de ação. Embora isso possa ser útil para situações de emergência, normalmente a potência é considerada um fator menos importante que a eficácia.

A eficácia de um fármaco é definida pelo efeito máximo gerado por ele. Um efeito máximo mais intenso significa que o fármaco é capaz de tratar casos mais graves, desde que ele seja administrado em uma dosagem maior. Todo fármaco possui um efeito máximo, não importando o quanto a dose seja aumentada. Para explicar como funciona o efeito máximo, precisamos entender como os fármacos atuam no organismo, que é o outro ponto essencial da farmacodinâmica.

O corpo humano possui diversos tipos de células, e elas possuem diversos tipos de receptores. Receptores são moléculas grandes capazes de identificar outras moléculas específicas, chamadas de ligantes. Os ligantes, ao se conectarem aos receptores, induzem reações nas células, alterando seu funcionamento. Os fármacos, em sua maioria, funcionam como ligantes, que através dos receptores das células alteram o funcionamento do corpo.

Quanto mais moléculas de fármaco em contato com as células, mais receptores são ocupados e maior o efeito gerado. Entretanto, caso todos os receptores sejam ocupados, não há como aumentar mais o efeito, e por isso os fármacos possuem um limite no efeito máximo.

Outra coisa que é importante ressaltar sobre os fármacos é que, normalmente, eles são seletivos e não agem sobre todos os receptores celulares do corpo. Caso um fármaco entre em contato com um receptor que não é compatível com ele, nada ocorre, pois não há ligação entre os dois. A seletividade dos fármacos pode ir, desde um receptor encontrado em quase todos os tecidos do corpo, até um que exista apenas em um tipo de célula. De maneira geral, quanto mais seletivo é o fármaco, mais seguro e preciso é o efeito terapêutico.

Para finalizar, vamos abordar o assunto mais “avançado” desse texto, que são os tipos de fármaco, classificados de acordo com a interação que possuem com os receptores. Ao se ligar a um receptor, fármacos podem agir de duas formas principais: como agonistas ou antagonistas.

Os agonistas, ao se ligarem ao receptor, o ativam e induzem a resposta desejada. Um bom exemplo desse tipo é a família dos benzodiazepínicos (diazepam, por exemplo), fármacos que agem nas células do sistema nervoso central, incentivando a produção do ácido γ-aminobutírico (GABA), que é uma molécula capaz de promover sedação. Também fazem parte dos agonistas, os fármacos que são moléculas naturais do nosso corpo, como a insulina, que aumenta a captação de glicose das células, e a adrenalina, que age nos músculos do coração, aumentando as contrações cardíacas.

Os antagonistas, como é de imaginar, agem de forma oposta. Fármacos antagonistas se ligam aos receptores, inativando-os, o que impede a ação dos ligantes naturais do corpo. Um bom representante desse grupo é a família dos anti-histamínicos, que inibem os receptores da histamina, ligante responsável pela dilatação dos vasos e obstrução dos pulmões durante as reações alérgicas.

Dentro desses dois grandes grupos, existem subdivisões, também de acordo com o tipo de interação entre o fármaco e o receptor. Os agonistas, por exemplo, podem ser agonistas totais, que possuem a maior eficácia possível, gerando efeito máximo, ou podem ser agonistas parciais, que geram efeito médio e têm uma menor eficácia. Existem ainda os agonistas alostéricos, que não se ligam na zona principal dos receptores, mas sim em locais chamados de “sítios alostéricos”, que alteram o funcionamento dos receptores, tornando-os mais ou menos sensíveis aos ligantes. No caso dos agonistas alostéricos, os receptores se tornam mais sensíveis, ou mais disponíveis.

O grupo dos antagonistas também costuma se dividir em três subtipos, sendo eles:

  • Antagonistas competitivos reversíveis: disputam com os ligantes pelo receptor, se ligando de forma reversível ao mesmo.
  • Antagonistas competitivos irreversíveis: também disputam com os ligantes pelo receptor, mas se ligam de forma irreversível a ele, inativando-o permanentemente.
  • Antagonistas alostéricos: se ligam ao sítio alostérico do receptor, o tornando menos sensível, ou menos disponível.
O grupo dos antagonistas competitivos reversíveis diminui a potência dos fármacos ou ligantes de um receptor específico, mas não altera a eficácia. Caso haja uma concentração muito maior de ligantes do que de antagonistas competitivos reversíveis, a inibição gerada por eles é ignorada e o efeito máximo é alcançado. Agora, os antagonistas competitivos irreversíveis, assim como os alostéricos, diminuem tanto a potência, como a eficácia dos fármacos e ligantes do receptor, uma vez que o tornam inativo, ou semi-inativo, de forma permanente.

Embora a maioria dos fármacos atue como ligantes dos receptores das células, existem outros modos de gerar efeito farmacológico. Alguns fármacos se ligam a enzimas, alterando seu funcionamento, como o ácido acetilsalicílico (aspirina), analgésico que inibe as enzimas produtoras de prostaglandinas, responsáveis por gerar dor e inflamação. A maioria dos antiácidos - utilizados para tratar azia - também não dependem de ligação a receptores celulares, eles simplesmente contém moléculas alcalinas, que ao serem ingeridas, diminuem a acidez do estômago.

Com isso finalizamos essa série de textos sobre fundamentos de farmacologia, indo desde conceitos básicos, como o que são os fármacos, até conceitos avançados, como o mecanismo de ação dos mesmos. Esse é um projeto novo aqui no blogue, que une quatro textos complementares, mas de certa forma independentes, e realmente esperamos que o conteúdo apresentado ao longo das quatro publicações seja interessante e útil ao mesmo tempo. Se você leu até aqui, muito obrigado pela atenção, e até a próxima publicação!

Acesse a parte 1, sobre o que é um medicamento, aqui.

Acesse a parte 2, sobre as vias de administração de fármacos, aqui.



Essa postagem foi editada por David Majerowicz e Gustavo Martins

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