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[Blogue do Sobrinho] (re)Lendo as estrelas

 
"A tentativa de manter tudo sob controle pode ser cansativa, além de frustrante. Afinal, muito do que queremos administrar simplesmente não está sob nosso comando. É tempo de viver com mais leveza."

A afirmação acima foi retirada de uma das páginas do jornal O Globo. Textos como este são facilmente encontrados em muitos dos jornais e revistas de grande circulação, com seções inteiras dedicadas à eles, aos textos do gênero horóscopo.

Pode ficar tranquilo, esse texto não é mais uma daquelas tentativas chatas e sem sentido de fazê-lo abandonar suas crenças e nem de discursar em favor de um ideal de ciência como forma superior de conhecimento. Meu objetivo aqui é trazer a questão dos horóscopos em jornais e revistas para um debate no campo da construção de saberes, por um olhar histórico e social.

Um bom ponto de partida pode ser uma rápida olhadinha no dicionário Houaiss, lá nós encontraremos as seguintes definições para o que vem a ser um horóscopo:
 
  1. diagrama das posições relativas dos planetas e dos signos zodiacais num momento específico (como o do nascimento de uma pessoa), us. pelos astrólogos com a intenção de inferir o caráter e os traços de personalidade e prever os acontecimentos da vida de alguém; cronograma, mapa astral, mapa astrológico, tema astral, tema celeste
  2.  p.ext. previsão astrológica
Daqui podemos extrair a noção de que os horóscopos são construídos a partir de leituras das posições relativas entre os corpos celestes, fruto do trabalho do Astrólogo, por meio da Astrologia. Podemos dizer também que são produzidos com o objetivo de fazer previsões a respeito das diferentes áreas da vida de uma pessoa ou sobre mudanças importantes no mundo terreno, levando em consideração coisas como a posição do planeta Vênus em um determinado período, por exemplo. No caso da previsão que se encontra na abertura deste texto, ela foi feita para o signo de peixes no dia 30 de outubro de 2019, sendo assim todas as pessoas nascidas entre 20 de fevereiro e 20 de março (que corresponde ao signo em questão) deveriam, naquela data, passar a viver a vida com mais leveza e não se preocupar em administrar coisas que não estão sob seu controle. Mas de onde que nós (seres humanos) tiramos essa ideia de que eu posso dar palpites sobre a vida baseados nos astros?

Olhando para a nossa história, é bem verdade que tentar prever os fenômenos que ocorrem na Terra a partir da interpretação dos céus é uma atividade humana desde que nossos ancestrais têm a possibilidade de olhar para os céus. E até certo ponto este pode ser considerado um empreendimento bem sucedido, além de ter sido consideravelmente determinante para a sobrevivência da nossa espécie. Ao olhar os movimentos relativos e aparentes dos astros fomos e somos capazes de coisas como marcar a passagem do tempo, associar mudanças cíclicas no nosso planeta (como as estações do ano) ao movimento celeste e assim decidir como e quando realizar atividades de plantio, por exemplo. Num contexto em que sua vida pode realmente depender de onde no céu está um determinado objeto, é totalmente coerente que se entenda os astros como regentes supremos da vida na Terra e que a eles sejam dadas propriedades divinas. As primeiras “religiões” certamente eram naturalistas, tendo elementos naturais como “deuses”. A forma mais antiga de culto é o culto à natureza.

Essa necessidade foi sempre tão urgente na nossa história que os grandes impérios de antigamente, me refiro aqui aos babilônios, egípcios e povos originários das Américas, dedicaram tempo e força de trabalho intelectual e físico na elaboração de sistemas, e técnicas de mapeamento do céu, e na construção de estruturas incríveis para que não perdessem um só movimento de seus “deuses”. Foram os babilônios quem registraram muitas das constelações que conhecemos hoje (como Escorpião e Leão) em suas tábuas de argila, com seus caracteres cuneiformes. Além disso, pensaram o céu dividido em 360 graus, o dia de 24 horas e o ano de 360 dias. Textos babilônicos ainda sugerem o cuidadoso e matemático registro da posição de planetas e outros corpos celestes, como nos registros presentes na tábua de Mul Apin, e o uso de séries matemáticas em progressão aritmética para a previsão de fenômenos periódicos como os eclipses. Dados como estes faziam parte de um calendário astronômico relacionado a interesses políticos e religiosos. Outra base de conhecimento astronômico ancestral é a produzida pelos astrônomos e sacerdotes egípcios. Dentre as preocupações da astronomia egípcia estavam a vida pós-morte e a ordenação da vida civil. Os egípcios também dividiram os céus em regiões como as constelações babilônicas. Registros como o papiro de Nesitanebtashu mostram um céu partilhado entre os deuses. Os egípcios também dividiram o dia em 24 horas, o ano em 360 dias (12 meses de 30 dias) aos quais eram adicionados 5 dias para fazer coincidir o ano solar e o ano civil, totalizando 365 dias. Enquanto isso, do outro lado do mundo, povos descendentes dos Olmecas que habitavam a América Central, desenvolviam cidades-estado dignas de Ur (cidade estado Suméria) e da própria Babilônia, e de forma semelhante muito conhecimento astronômico como nos mostram as ruínas de seus templos e calendários, os poucos registros que sobreviveram à invasão europeia às Américas.

Como se pode ver, as constelações nascem com o objetivo de conseguir se identificar regiões do céu, de criar algum tipo de mapa celeste, em especial as que conhecemos como sendo as zodiacais, que estão presentes na região do céu onde Sol parece passar (trajetória aparente) ao longo do ano, a região Eclíptica. De fato, esses povos e culturas, a partir de suas formas de escrita e simbologia, produziram tais mapas e formas de lê-los. No entanto, é comum quando se fala em astronomia referir-se aos gregos como os os formadores de sua base. Porém é somente por volta de 500 a.c. que o conhecimento produzido por povos africanos e asiáticos são introduzidos na Europa através dos Gregos. Inclusive a maioria das constelações gregas, o que inclui as zodiacais (que são as do horóscopo) são cópias das descrições produzidas por estes povos. Para os assírios as constelações de “Gêmeos”, “Capricórnio”, “Áries” e “Peixes” eram “Grandes Gêmeos”, “Peixe-bode”, “Trabalhador” e “Andorinha”, por exemplo. Não se pode ainda deixar de lembrar que enquanto a Europa mergulhou nas trevas, foi o esforço e trabalho do mundo Árabe que manteve e ampliou toda uma cadeia de conhecimentos que mais tarde viriam a se tornar a base da astronomia moderna.

Toda essa discussão traz alguma luz (histórica) a questão do porque as pessoas gostam dos horóscopos. Observar, medir e mapear o céu remontam à atividades humanas ancestrais, remontam à uma época em que a astrologia e a astronomia eram saberes inseparáveis, diretamente ligadas à sobrevivência não só dos indivíduos mas também dos coletivos. Mas porque revistas, jornais e outras mídias de comunicação em massa têm tanto interesse em divulgar e promover o gênero horóscopo na modernidade?

Vimos que grande parte desse conhecimento nos chega por meio da apropriação ocidental dos saberes produzidos na África e na Ásia, e da aniquilação de uma outra parte produzida na América Central. Então, o horóscopo e astrologia como nos é oferecido hoje é uma construção que reflete esse processo histórico de apropriação e destruição de alguns saberes em relação a outros. Os textos do gênero horóscopo são ainda moldados pelas questões sociais em pauta nas suas respectivas épocas de publicação. Como aponta CORDEIRO (2014):

Vale ressaltar que o foco que vemos nos horóscopos de hoje pode não ser o mesmo dos horóscopos de décadas atrás, visto que sabemos que assim como a sociedade muda ao longo do tempo, os interesses, as categorizações, os discursos também sofrem transformações, prova disso é que na década de 1920 o horóscopo voltava suas previsões para tratados comerciais, viagens, negócios, etc., estando, consequentemente, mais direcionado ao público masculino (CORDEIRO, Danúbia. Natal, 2014).

Essa adequação de conteúdo e linguagem não limita-se apenas ao período, mas também leva em conta o público alvo daquela mídia, o que por sua vez está associados aos interesses e à comunicação que um determinado setor da mídia quer produzir. O exemplo disso são os textos presentes nas revistas dedicadas ao público adolescente feminino. O que se diz e como se diz sempre está carregado das intenções de quem o faz, quem comunica algo o faz por um motivo e com uma intenção. No caso da grande mídia, sua intenção é (além de vender mais e assim ganhar dinheiro com propaganda) reforçar, criar e formar opiniões do seu público sobre os temas de interesse para o segmento no qual o jornal ou revista atua, por exemplo. Os tão populares horóscopos de hoje são recursos interessantes para atrair o público e vender um determinado jornal ou revista, mas também, ao utilizarem um conhecimento ancestral de forma apropriada, descontextualizada e puramente mercadológica, estão constantemente reafirmando e exaltando uma posição imperialista acerca do conhecimento.

Referências Bibliográficas

CORDEIRO, D.B., 2014. O Gênero Horóscopo em Suportes Midiáticos: Uma Análise das permanências e mudanças sob o olhar das Tradições Discursivas. 25º Jornada Nacional do GELNE, Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste.

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